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Folclore nas bocas do mundo

Há algum tempo atrás, fui aprofundar as circunstâncias e o curriculum pessoal do antropólogo e antiquário inglês William John Thoms, que em 22 de Agosto de 1846 deu à luz o termo “folk-lore“.

Descobri que era um estudioso e não um artista, no sentido comum aplicável à generalidade de quem recolhe danças, trajos e cantares com o objectivo principal de as apresentar em espectáculos. Não era sequer um apaixonado pela expressão musical ou por artes performativas.

Por outro lado, o significado de “lore” tem sido objecto de simplificações históricas ao longo dos últimos oitenta anos, associando-o apenas a “tradições” e estas tomadas como sinónimo de danças. Todavia, esta associação de significado não é exacta e o detalhe da inexactidão faz toda a diferença: por “lore” deve entender-se o estudo das lendas, usos, tradições, sabedoria e literatura popular, acumulados por aprendizagem ou pela experiência. É uma expressão longa para um significado, por isso tem sido condensado em “sabedoria do povo” o que parece mais prático… mas não poderemos esquecer que “lore” é, antes de mais, o estudo ou o conhecimento da sabedoria do povo.

O desvio de significado do termo “folclore“, usado como o insulto a que chegámos, ilustra-se na rubrica “Por que não te calas P.. ” do Jornal Folclore, que é muito menor do que a ponta visível do iceberg da deturpação. É um filho legítimo, directo e imputável aos agentes, às práticas e às organizações que ao longo de décadas se tem apresentado como folclore.

Têm sido os exemplos reais e observáveis proporcionados pelos chamados “ranchos” e pelos grupos de folclore que geram estas opiniões e a sua identificação como algo que deve ser desprezável ou pouco digno. É esta a razão porque se instala em mim o medo de ouvir a palavra, porque poderão estar a associá-la ao trabalho da colectividade que dirijo.

Entre nós já está consciencializado que tudo deveremos fazer para que o esforço associativo não seja denegrido e para que o património cultural dos nossos antepassados serranos seja uma herança valiosa e útil como guia orientadora de valores, onde os saberes da experiência sejam referências de comportamento pessoal e comunitário. Tudo o que permanecer útil não morre dar-lhe utilidade, ainda que seja cultural ou económica, é a nossa missão de fiéis depositários na actualidade.

Tal como uma propriedade material apenas será zelada se for conhecida e visitada com frequência, também este património imaterial exige visitas frequentes através de estudo, investigação e conhecimento antropológico. Trata-se da CULTURA NATIVA que nos gerou, que gostamos de revisitar e que nos apaixona exibir. O recreio das gerações passadas e o seu estudo e representação são, hoje, actividades culturais tão dignas, como eram as vivências nativas e milenares das comunidades de vizinhos portugueses.

Por todas estas razões e porque sentimos algum vexame no uso impróprio do termo “folclore“, na Associação Etnográfica Os Serranos deixámos de o aplicar a nós próprios, libertando-o para todos os que dele precisarem de fazer uso… procurando que não se aplique a nós.

Entre nós, n’Os Serranos, preferimos a designação de Grupo de Cultura Nativa e sabemos que o próprio criador da expressão “folclore” já denotava alguma vergonha ou medo subconsciente desta criação, porque o trabalho publicado no Jornal Athenæum onde se propôs o uso do termo “folklore“, foi assinado sob o pseudónimo de Ambrose Merton, escondendo a verdadeira identidade do bom antropólogo William John Thoms.

Fonte: “Dignificar o Folclore”, Manuel Farias, Edições Cosmos (edição e negritos da responsabilidade da Equipa do Portal do Folclore Português)

Imagem de destaque: «Cantigas de Amor», Quadro de Carlos Reis in “Ilustração” nº4 1932