Artesanato

As Mantas de Terroso – Tecelagem caseira

Mantas de Terroso

A planície litoral é duma monotonia por vezes agreste, desconsoladora.

Para onde haja um relevo, uma vegetação, dirigem-se os olhares cismadores do habitante da beira-mar, em procura da variante do eterno tema – céu e ondas.

É por isso que os poveiros chamam desvanecidamente a sua Sintra à pequena aldeia de Terroso, que se aconchega a suave colina, a curtos quilómetros da praia.

É linda Terroso, com as suas casas alvejando por entre o arvoredo, o cuidadoso amanho das suas terras entregues à faina agrícola, a disposição dos lugarejos pelos escalões da vertente, a paz idílica que se desprende, fluída, subtil, do rumorejar dos pomares e do soluço das águas finas e cintilantes que borbulham e coleiam, a cada passo, fertilizando os campos e vicejando os canteiros.

Ao conjunto de sons indecisos, variados, embaladores, que constituem a sinfonia constante que aldeias endereçam à Natureza – cantos longínquos de aves, vozes arrastadas dos lavradores no trabalho, agitar da folhagem, águas nas levadas – junta-se o ruído seco e compassado dos teares, em que belas raparigas urdem as mantas tão conhecidas no Minho e agora, pela rapidez e facilidade de comunicações, em quase todo o país.

Indústria caseira

É uma indústria caseira a da fabricação de mantas, e que, durante algum tempo estacionária, se tem desenvolvido e aperfeiçoado, dando um derivativo proveitoso aos ócios das mulheres dali e arredores.

Os velhos de Terroso não sabem dizer quando se instalou ali esta tecelagem caseira e só se lembram de que seus bisavôs já usavam as mantas, peça de bragal, empregada como cobertor ou coberta de cama, ou para resguardar os sacos dos cereais, quando transportados em carros para qualquer parte.

Vê-se a manta a compor a cama do pobre, a guarnecer o aposento do remediado e, por moda, a servir de reposteiro ou alcatifa na casa dos ricos.

De que são feitas as mantas de Terroso?

E sabem de que se compõem as mantas de Terroso? De trapos.

Trapos de qualquer artigo, qualidade e cor, velho ou novo: de lã, de algodão, de chitas, de panos crus, ou restos da liga ou trança de chinelos.

Estes trapos vão a teares manuais, de construção simples, os que vulgarmente se empregam na tecelagem caseira. A manta sabe fortemente urdida, em espécie de entrançadado ou tenilha.

Sobre fundo branco ou claro há, a encarnado, amarelo, verde, azul e preto, ornatos muito singelos e pouco variados: losangos e faixas de listas no sentido da largura ou do comprimento, que são de ordinário 2m e pouco mais x 1m e alguns centímetros.

As mantas vulgares, embora de aspecto grosseiro, apresentam, por vezes, tonalidades ou combinações de cores, que as tornam características.

Fabricam-se também outras com trapo limpo e escolhido e lãs; e hoje o fabrico estende-se também a tapetes e cobertas de algodão branco, de diversos padrões.

De homens para mulheres e crianças

Primitivamente indústria de homens, passou a ser emprego de mulheres e crianças; e do seu primitivo centro irradiou para freguesias próximas, como sejam as de Amorim, Beiriz e Laúndos do concelho de Póvoa de Varzim, de Rio Mau, do de Vila do Conde e outros, isto pelos casamentos das tecedeiras com homens das mesmas freguesias.

Às crianças é reservada a separação do trapo, dobagem do algodão, etc., e às mulheres o corte do trapo, urdidura e tecelagem.

Às mulheres chamam manteiras. Propriamente no fabrico de mantas empregam-se em Terroso, entre adultos e crianças, 300 pessoas, havendo 70 teares em funcionamento.

A produção anual é de 25.000 mantas, que são remetidas para os mercados de Vila Nova de Famalicão e de Vila do Conde (onde são vendidas nas feiras); para o Porto, Aveiro, Coimbra, Figueira, todo o Alentejo (onde também são vendidas nas feiras) e Algarve, saindo para esta última província pelo porto de Vila do Conde, nas embarcações do transporte de sal.

Tipos de mantas e custos

Comercialmente, as mantas são classificadas em três tipos: velhas, chitas e novas.

As primeiras, compostas de trapos ordinárias, são de tons escuros e custam actualmente $40 a $5o cada uma; e eram de $28 a $32.

As segundas, fabricadas com panos crus, chitas ou liga, com ou sem franja (fróque), regulam por $80, 1$20 e 1$50 cada uma, conforme a qualidade e matéria empregada; e eram de $50 a $80.

As últimas, feitas de trapo escolhido e limpo, quase sempre branco, com franjas e ornamentadas a várias e garridas cores, sendo conhecidas vulgarmente por colchas, custam 1$50, 2$00 e 2$50 cada uma; e eram de 1$20 a 1$50.

A venda é feita às dúzias e a mercadoria tem a maior saída pela estação de Amorim na linha Porto – Póvoa – Famalicão, que lhe passa no extremo poente.

Terroso

Terroso

é uma povoação em que a indústria caseira da tecelagem se generalizou muito.

Além de 70 teares para mantas, tem mais 20 para o fabrico de pano de linho, comum à maior parte das aldeias do país, sobretudo nas regiões montanhosas ou sub-montanhosas, como esta.

Se bem que o maquinismo seja, o que comumente se observa, primitivo, feito pelos modelos luso-romanos, a indústria tem sofrido aperfeiçoamento: primeiro, as mantas grosseiras, ásperas, escuras, verdadeiros buréis;

há poucos anos, as colchas de cores claras ou vivas, os tapetes, etc. Aquelas, compostas de trapos sem preparos, ordinários, vis; estas, com o emprego de algodão russo, retalhos limpos, e com cuidada ornamentação.

Sobre essas dezenas de teares, singelos, despidos dessas insculturas típicas abundantes no sul e que constituem o relato indelével duma vida de humildes operárias, curvam-se, no dia-a-dia, centenas de mulheres, que procuram suprir, com penosa faina, a deficiência do salário dos pais, maridos ou irmãos – carpinteiros, pedreiros ou jornaleiros.

E quantas vidas de sofrimento não vão contando, no seu estalejar continuo, seco, enervante, aqueles teares de Terroso!

Fevereiro de 1917

Manuel Silva

Fonte: “Terra Portuguesa – Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia” (ano 2 – nº 17 a 20 – Junho a Setembro de 1917) (texto editado e adaptado) | Imagem