As ovarinas, “raça especial” que invadiu Lisboa!

As ovarinas

É uma raça especial, robusta e bela que, como as andorinhas, na primavera, invadem Lisboa chilreando alegremente e trabalhando sem descanso no arranjo do seu ninho, assim as ovarinas veem em bandos para a capital ganhar a vida em trabalho honrado.

Em geral são formosas, mas diga-se para sua honra, não é desse precioso dote da mulher que tiram partido, mas da robustez dos seus músculos, da actividade da sua vida, deitando-se ao trabalho por mais violento que seja.

O principal emprego da ovarina, em Lisboa, é o da venda de peixe pela cidade, mas quando o não há, ela não se queda; o seu ânimo não lhe sofre estar à espera do que há-de vir; procura logo em que empregar a sua actividade.

Vai para a descarga do carvão de pedra, vai trabalhar em desaterros cavando ou carregando, e se não consegue arranjar trabalho assim, volta-se para a venda de quaisquer géneros pelas ruas da cidade, de modo que sempre ganhe o seu dia, e depois de toda a lida diurna, é vê-la à noite cuidar do arranjo da casa, fazer a ceia, ir buscar água ao chafariz, em grandes bilhas à cabeça, cantando e rindo com as suas companheiras.

Se são casadas e têm filhos – e raras são as que os não têm – as criancinhas não impedem que elas continuem nos mesmos trabalhos, e assim com os filhinhos ao colo ou pela mão lá andam lidando no seu comércio.

Nas noites de Santo António, de São João e de São Pedro, as ovarinas dão a nota alegre da cidade com os seus descantes e bailados pelas ruas e praças, especialmente no Rossio e no mercado da Praça da Figueira.

A festa do Senhor da Serra é também outro dia de regozijo para as ovarinas.

Vão todas para Belas em alegre romaria com os seus homens, algumas em carroças enfeitadas de flores e chitas de ramagens, outras a pé calcorreando por essas estradas não menos de quinze quilómetros, dançando e cantando pelo caminho, e assim como vão veem, sempre alegres e incansáveis, descalças ou de tamanquinhas, sustentando nos quadris bem reforçados, suas numerosas e fartas saias que lhe dão pela tíbia, e sobre o farto colo, onde se avolumam os seis protuberantes, bastos cordões de ouro, contas, corações, cruzes, Nossas Senhoras do precioso metal, como em tabuleta de ourives, recamando-lhe o corpete avivado ou a camisa de mangas ao punho com seus cabeções bordados.

Das orelhas pendem-lhe grandes arrecadas de filigrana ou até de ouro maciço e a emoldurar-lhe o rosco colorido e vivo, um lenço de seda de cores vistosas, pontas caídas, saindo-lhe de sob o chapéu redondo que lhe completa o traje.

É assim a ovarina nos seus dias de festa, e ainda nos dias de faina o seu porte e traje é sempre de ver, como a descreve Bulhão Pato, nestes graciosos versos:

(Georgica)

Com a sardinha empilhada
Inda saltando vivaz,
Vem de cestinho, avergada,
Vem de lá de baixo, da praia,
E sobe o pino o almaraz…
Mas nem por sombras cansada!
Corada ao sol, e puxada,
Faz vista de nova a saia!

Descalça. O pé regular
E brunido pela areia
Dessa arribas do mar.

Não se pode chamar feia,
Descaída e farta a trança,
Afrontada do calor,.
O lencito desatado,
E os beiços com tanta cor
Como a dum cravo encarnado:
– A mocidade é uma flor!

Magrinha; mas que vigor
No seu passo de balança.
E, para apressar os passos,
São duas asas os braços!

A venda deve ser boa
Que há muito que o mar não dá…
Com que alvoroço apregoa:
«Sardinha fresca!… fres-quiá!…»

Vêm as outras companheiras
Mais atrasadas. Avante,
Ao Monte por essa encosta,
Ao Monte, ao Pragal e adiante
Que há muito que o mar não dá…
«Sardinha fresca! da Costa!
Viva da Costa!… Fres-quiá!…»

Bulhão Pato

Ovarinas em Lisboa
As Ovarinas – Desenho do sr. M. de Macedo

Fonte: “Ocidente”, nº730 – 1899 (texto editado e adaptado)