Vindimas na região do Alto Douro (1922)
Vindimas
Um sopro pagão agita a Terra, beijada de Sol, plectórica de riquezas ocultas e estuantes.
A bênção de Deus desceu sobre os fraguedos ásperos, os socalcos ribeirinhos cavados em leito de seixos agudos, as veigas gritantes de pâmpanos viridentes e os cachos ricos de colorido e frescura pendem uberes dos esteios tisnados, das latadas umbrosas, ou das carvalheiras altivas, numa afirmação prodigiosa de abundância e alegria.
A Terra fecundada pelos suores de muitas lidas desentranha-se em maravilhas.
Ontem ainda eram as messes douradas, que hão-de ser pão de fartura em lares de pobreza e hóstia de Deus nos altares da fé.
Depois os frutos perfumados de tonalidades doces e caro sabor vieram, na orgia triunfante do Sol, avolumando suas polpas tenras, sazonando em perfeição e beleza, até se desfazerem em delícias nas bocas avidas de frescura.
Por último, os vinhedos gloriosos, riqueza máxima deste solo bendito, começaram deixando entrever por entre a folhagem metálica as gemas preciosas dos seus frutos.
Obra de Deus e dos homens
São topázios doirados aqui, rubis sangrando além, pérolas, opalas, ametistas, toda uma gama variegada, que põe chispas de alegria nos olhares ingénuos das crianças e um esplendor de orgulho na face tisnada dos cultivadores.
É que tudo aquilo, toda aquela preciosa joalheria é obra deles e de Deus.
E nunca nenhum lavrante mistério das coisas preciosas sonhou tão alta ajuda ao seu labor.
Completada a obra maga do Sol colorista mestre destas naturezas vivas, as hastes tenras começam a vergar ao peso dos racimos apojados de seiva.
É a hora de se iniciar a geórgica encantadora das vindimas.
Ranchos de cachopas espalham-se pelos vinhedos, no meio dos quais seus trajes garridos lembram grandes florações bizarras.
Num hino a Deus, ao Sol à fecundidade as suas gargantas cristalinas entoam as canções ingénuas do povo, estimulo e derivativo à labuta áspera e, torsos curvados, percorrendo as longas alas dos vinhedos, ou suspensas da ramaria das vinhas «de enforcado» ei-las que delicadamente cortam os cachos formosos, que os esguios cestos vindimos hão-de transportar para o lagar.
Ah! as mil e uma cerimonias desse ritual misterioso: que se cumpre antes que o bago dourado ou negropolido seja licor capitoso e perfumado!
Ah! a alegria dionisíaca dessa lesta pagã!
Descantes no lagar
Os descantes à volta do lagar onde as uvas martirizadas destilam a riqueza do vinho, os beijos roubados com lábios tintos de mosto espesso, o prazer de viver entre os perfumes suaves das uvas cortadas e as exalações fortes das fermentações nas cubas enormes!
Toda a alegria meridional se expande então e não há dique que contenha o entusiasmo exuberante do povo.
É que o vinho não é só o prazer celta de beber e sonhar depois, é a abundancia de todo o ano, a riqueza para muitos, e o conforto para todos.
Ele é o oiro que sai liquido para voltar amoedado e sonante.
Graças a ele as exportações quási equilibram as importações, sendo assim um dos principais factores da nossa riqueza colectiva.
Medicina popular
Além da abundância ele é muitas vezes a saúde e a vida.
Quantos organismos exauridos de forças não sentem voltar-lhes as energias, graças a esses licores preciosos, velhos de cem anos, escondidos nas adegas frescas, que cheiram a todos os perfumes e sabem a todas as delicias e que parecem espessos a ponto de se poderem cortar e doirados como oiro derretido.
O outono é agora o luto dos campos. Só nos vinhedos um pintor modernista espalhou a largas pastadas as tintas da sua paleta bizarra.
E por muito tempo ainda o que foram pâmpanos verdes e jucundos vestirão outras galas.
Desde a púrpura majestática ao roxo lutuoso, passando por todos os tons do amarelo, do vermelho e do verde, as videiras fulgirão nos campos como uma saudade do Sul.
J. B.
Fonte: “Ilustração Portuguesa”, nº 871 – 1922 | Imagens: (Clichés. Fot. Barbosa dos srs. Moraes & Campos)