Vale da matança – Rio Ponsúl | Etnografia da Beira

Lenda: Vale da matança – Rio Ponsúl

A luta ia renhida. De encontro à resistência heroica, quási sobre-humana dos destemidos habitantes da Lusitânia, desfaziam-se grandes legiões comandadas pelos melhores generais romanos.

Á cuidada preparação dos legionários, à sistemática instrução que, quer no manejo das armas quer nos exercícios atléticos, lhes era ministrada na Urbs, antepunham os lusitanos o seu grande amor ao torrão natal, a agilidade de movimentos através as mais duras sinuosidades do terreno, a sobriedade na comida e no vestuário, a resistência indómita de quem, acima de tudo, quer viver independente e livre.

A raça de que descendemos soube e pôde assim quebrar, durante anos, os ímpetos do maior exército do mundo, infligindo-lhe por vezes derrotas sanguinolentas. E legiões vieram e legiões partiram sem que consigo pudessem levar ao Forum a grata notícia da submissão dos montanheses dos Hermínios.

Roma viveu dias de pânico, chegando mesmo a recear pelo resultado final!

Corriam os primeiros anos do segundo século antes de Cristo. A cidade de Egitania (Idanha-a-Velha) caíra já em poder dos romanos.

Dentro e fora de suas muralhas ia uma vigilância aturada: dentro, a dos invasores, preparando-se para novas surtidas, fora, a dos lusitanos, esperando, através duras e constantes vigílias, o momento azado para lhes inutilizarem a acção.

O Procônsul resolveu um dia infligir severo castigo aos audaciosos indígenas cujo atrevimento chegara ao ponto de virem ali mesmo, às portas da cidade, espreita-los e desafia-los.

Uma surtida romana no campo inimigo

Para isso dirigiria ele próprio uma surtida no campo inimigo. E, de facto, marchando como para triunfo certo, por uma das portas da cidade foi saindo, Procônsul à frente, em certo dia, boa parcela do exército romano.

Os soldados lusitanos que próximo, por entre os densos matagais, os espreitam, fremem de raiva ante a superioridade do número.

Aprestam os escudos, enrijam os músculos e enquanto os legionários avançam, aproximam-se da estrada. Estão quási à mão! Mais um momento! E como feras, como gigantes, aquele punhado de heróis e de valentes cai à cutilada, à machadada sobre os invasores. A luta é dura porque é desigual.

Muitos pagam com a vida a sua devoção patriótica, mas no campo inimigo a mortandade é tal que, desde então, para se continuar até hoje, o local, pequeno vale entre a estrada e o rio, ficou conhecido pelo Vale da Matança.

E mal ferido, e entre as vascas da agonia, o Procônsul, que a custo se arrastara até junto do rio, ali exalou o último suspiro. (1)

E do facto, igualmente resa a tradição, ficou ao rio o nome de Procônsul para, com o andar dos tempos, se chamar, como ainda hoje se chama, Ponsúl.

(1) Para Roma, diz o povo, foi o cadáver do Procônsul envolvido em mel dentro de um odre de pele de boi.

Fonte: Etnografia da Beira, Jaime Lopes Dias (foi mantida a grafia original) | Imagem de Wajari Velásquez