A evolução do traje da mulher da Nazaré
Traje da mulher da Nazaré
“O traje nazareno feminino não parou no tempo, nem se tornou uma peça museológica; pelo contrário, tem acompanhado as variações da moda – saias mais curtas ou mais compridas; novos tecidos, cores e padrões. É um traje que renasce cada ano, tornando a nazarena única entre as demais.”
Esta afirmação surge no site da Câmara Municipal da Nazaré, procurando retratar a evolução do traje típico das suas gentes.
Esta realidade coloca-nos algumas questões que merecem a reflexão adequada numa perspetiva etnográfica e a procura de respostas que não se condicionem aos dogmas estabelecidos no domínio do folclore.
O traje da Nazaré
Antes de mais, convém compreender que as gentes da Nazaré continuam a exibir no seu quotidiano a forma de vestuário que herdaram dos seus ancestrais.
Embora, naturalmente com as adaptações ditadas pelas modas que sucederam ao longo do tempo.
Este fenómeno, a que não é alheio certamente a propaganda turística ocorrida em meados do século XX, não se reproduz na maior parte das regiões do país onde os costumes tradicionais cederam à padronização do vestuário e dos hábitos ditados por uma sociedade industrial e consumista.
A Nazaré resistiu.
E a preservação dos seus costumes típicos e da sua gastronomia, associados à beleza da sua paisagem, tem constituído um fator de desenvolvimento económico da região e conseguido assegurar condições de vida dignas das suas gentes.
Tal como sucedia em todo o país e abrangia a mulher pertence a todas as classes sociais, também a mulher nazarena nos finais do século XIX vestia saias que a encobriam até aos pés.
Acompanhando as modas e, naturalmente, influenciada pelos novos costumes dos banhistas e com algum sentido prático, foi aos poucos encurtando as saias e desvendando o seu vestuário mais íntimo.
A propaganda turística encetada durante o Estado Novo viria a tornar emblemática as “sete saias” da Nazaré.
Como interpretar as alterações introduzidas ao longo dos tempos?
Coloca-se aqui a questão a saber se, perante uma peça que não foi remetida à prateleira da História, mas antes pelo contrário continua a ser utilizada e a acompanhar a evolução dos tempos,
– deve ser considerada do ponto de vista etnográfico e folclórico tal como atualmente se nos apresenta ou, pelo contrário,
– as modificações introduzidas deverão ser entendidas como adulterações e, por conseguinte, liminarmente rejeitadas.
E, assim sendo, qual a referência temporal que deve ser considerada válida para a aceitação de um modelo de acordo com os padrões de autenticidade do traje da mulher da Nazaré.
Afinal de contas, importa saber o que sucederia se os trajes característicos de outras regiões do país não tivessem sido remetidos às prateleiras dos museus etnográficos ou a simples peças exibidas pelos grupos folclóricos mas antes, continuassem a fazer o seu curso normal, continuando a constituir o vestuário usual das nossas gentes, recusando os padrões criados pela grande indústria têxtil e de vestuário.
Teriam eles resistido ao tempo e permanecido inalterados desde os finais do século XIX até aos nossos dias?
A preservação de memórias históricas
O aparecimento da fotografia e das técnicas de gravação sonora constituíram, entre outros aspetos, fatores determinantes que possibilitaram a preservação de memórias históricas entre as quais se incluem as de natureza etnográfica.
O espírito romântico associado à necessidade de preservar a identidade cultural perante o crescimento de uma sociedade moderna e industrial que ameaçava dissolver os costumes tradicionais levou ao aparecimento de formas organizadas de salvaguarda de um património cultural que corria o risco de desaparecer.
O associativismo então emergente como forma de participação cívica fez o resto.
Não admira, pois, que a generalidade dos grupos folclóricos atualmente existentes reporte a sua representação aos finais do século XIX e começos do século XX, beneficiando ainda da resistência dos materiais que constituem a sua fonte documental, mormente as peças de vestuário que exibem.
Resta agora saber se, perante estes factos,
– deve ser tida em consideração a evolução permanente do traje dito tradicional ou, pelo contrário,
– ser apenas mantido como referência etnográfica os modelos referentes a uma época mais remota.
Porventura, os finais do século XIX, atendendo nomeadamente a que estes também registaram alterações em relação a épocas anteriores?
Carlos Gomes, Jornalista, Licenciado em História
Imagem de destaque: parte de um postal ilustrado alusivo ao traje das “sete saias”| Fotos: Artur Pastor. Arquivo Fotográfico da CML