Simbolismo da barba – Páginas etnográficas
A barba como símbolo de virilidade e de honra, donde provém este símbolo (1)
Um dote físico, que na mulher é desgosto, serve de orgulho ao homem como símbolo de virilidade e de honra, ao que sumariamente me referi nas Lições de Philologia, p.87-88; cfr. também Adrião in Rev. Lusit., XIX, 59-61; e supra (A barba em Portugal), cap.I.
Os rapazes, quando estão próximos da puberdade, começam logo a tactear a cara, e a puxar pela penugem, na esperança e no desejo de encontrarem barba que os faça homens.
Canta-se vulgarmente a tal respeito uma cantiga
Estes meninos d’agora
São franguinhos de vintém,
Prometem 10 réis às almas
A ver se lh’a barba vem…
Cantiga, como ponderaria um Alemão, «rica de conteúdo», – porque, pela comparação dos rapazes com frangos, liga-se a uma das funções mais activas da vida da linguagem, qual a da criação metafórica, tão fecunda no vocabulário quotidiano, como na escolha dos apelidos, e pela promessa às almas pertence aos extenso quadro das crenças populares: a isto agrega-se o pensamento geral satírico que conjuga aqueles dois, traduzido, de mais a mais, por forma simples e elegante.
Variantes
Eis outra versão da mesma cantiga:
Estes mocinhos d’agora
Só dizem que têm, que têm:
Prometem dez réis às almas
P´ra ver se l’a barba vem…
a qual me cantaram em Anha, concelho de Viana do Castelo.
Como variante das duas cantigas se pode considerar de certo modo a seguinte, que colhi no concelho de Melgaço, onde é muito conhecida:
Estes rapazes d’agora
São poucos, nem barba têm:
Já deram dez réis ao cuco
A ver se a barba le vem…
(le por «lhes»).
Com ela se relacionam as frases que vou mencionar, ouvidas por mim no mesmo concelho de Melgaço, e que lhe servem de explicação.
Tradições…
De um rapaz que ainda não tem barba caçoa-se assim: «há-de-se fazer uma encomenda ao cuco, para te trazer a barba para o ano»;
e de um que, apesar de estar nas mesmas condições, já namora: «tens de dar dez réis ao cuco, para te trazer a barba para o ano que vem».
Ao aparecer na cara a primeira peluge (vid. ob. cit. cap. I.) (1), diz-se ao respectivo rapaz: «já tens os pêlos do cuco: é que já lhe deste os 10 réis!»
Se a barba só nasce no mento, e não no resto da cara, o pobre rapaz ouve dizerem-lhe: «tu não encomendaste a barba ao cuco, mas à poupa!», onde poupa (ave) é simples trocadilho com o verbo poupar (barba poupada, isto é: rara ou incompleta).
Segundo a crença popular, o cuco dá pois a barba, e torna-se necessário pedir-lha.
Porque é que o cuco (Cuculus canorus de Linn.) dá barba ao homem?
O cuco e a Primavera
A razão, quanto a mim, está em ser o cuco ave da Primavera, anunciadora dela.
Um provérbio nosso diz: se o cuco não vem entre Março e Abril, || ou o cuco é morto, ou não quer vir. Variante da segunda parte: ou o fim (do mundo) está para vir.
O não vir naquele prazo o cuco, isto é, no começo da Primavera equivaleria a interromperem-se as leis da Natureza.
É bem sabido que o cuco migra no tempo frio para climas quentes, e volta à sua terra quando o tempo melhora.
Já na antiguidade clássica se celebrava o carácter primaveril da ave. Ela acompanha as festas do consórcio de Zeus e Hera, ou do Céu e da Terra (2).
Na Primavera vicejam as plantas, e ornamenta-se de flores toda a Natureza. A barba do homem é comparável a rebento vegetal; e pois que os verdores da primavera os anuncia ou acompanha a vinda do cuco, isto foi considerado causador deles (post hoc, ergo propter hoc), e ipso facto do rebento da barba, esta aparente vegetação do rosto humano (3)
Notas
(1) A barba ainda muito tenra chama-se «penugem», em latim «lanugo». Cada povo tirou a metáfora daquilo que lhe pareceu mais mimoso; nós, de «pena» (de ave: isto é, da rama da pena); os Romanos, de «lana» (lã). No Alto Minho, em vez de «penugem» dizem «peluge» (= pelugem, de «pêlo»), e por gracejo: «pêlo de rato».
(2) Cfr.: A. de Gubernatis, My thologie zoology., II, 243 e Otto Keler, «Die antikie Tiesswelt, II (Leipzig 1913), 63-67.
(3) À barba que nasce no mento do homem atribuí-se o nome de um fruto («pêra»).
A barba na literatura popular:(2)
Oliveira pequenina,
Que azeite pode render?
O homem de pouca barba,
Que respeito pode ter? (1)
(Faro).
Estes rapazes d’agora
Fazem a barba à fadista;
Com quatro, cinco navalhas
Compradas à sua vista.
(Vila Franca do Campo).
Espelho que não tem aço
Virado para a parede.
O homem que não tem barba
Ninguém faz causa (2) dele (3).
(Faial).
Estes rapazes d’agora
Dizem que têm e não têm:
Prometem dez réis às almas
A ver se a barba lhe vem (4).
(Proença a Nova).
Ó piacá, como estás tu, ó piacá,
Lava o bigode que eu venho já.
(Remate de uma cantiga popular do Porto).
Estava a D. Branca
Muito bem repousada:
Veio o João Barbudo
Deu-lhe uma bofetada.
(Ponta Delgada).
(Adivinha, simbolizando a cal da parede e o pincel do caiador).
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(1) Variante, publicada na Revista de Guimarães, XXXIII, p. 34:
Azeitona miudinha,
Que azeite pode render?
Homem pequeno, sem barba
Que respeito pode ter?
(Minho).
(2) Causa = causo = caso.
(3) Variante de Vila Franca do Campo:
Espelho que não tam aice (= aço)
Atira-s’a úa parede:
Rapaz que não tam bigode
Poucas conversas com ele!
(4) Variante de Coimbra:
Estes rapazes d’agora
Não valem nem um vintém:
Prometem dez réis às almas
Pra ver s’a barba lhe vem.
Nota vocabular e fraseológica:
O barba de ataful !: injúria, em Ponta Delgada; ataful é o mesmo que retranca.
Barbas de alho: alcunha na ilha de S. Miguel.
Barbozana: homem de barbas grandes, em Ponta Delgada.
Fazer a barbinha a alguém: levar alguém de vencida (Ponta Delgada).
Fonte: (1) “Alma Nova“, Número 3 – V Série, Outubro de 1927 (texto editado e adaptado) (2) “Etnografia Portuguesa” – Livro III | Imagem: Oliveira Martins