Usos, costumes e tradições

O trabalhador – Usos e costumes da região do Douro

O trabalhador no Douro

O quarto tinha uma varanda corrida do lado da frente e duas janelas para trás. Das janelas de trás avistava-se apenas a encosta do monte, muito íngreme, coberta de pinheiros que o sol, à tarde, incendiava.

Era dali que vinha a noite e, por isso, Renato tinha medo daquelas janelas e pedia que lhas fechassem. A varanda dava para o vale do Douro.

Os montes da outra banda eram altos mas longínquos. O sol passeava por eles todo o dia, subindo e descendo, consoante a hora. De manhã era cor-de-rosa, ao meio-dia, doirado e, ao crepúsculo, quando saltava das cumeadas para as nuvens brancas e ténues, vermelho como sangue vivo.

Lá em baixo, o rio, ora se espraiava junto dos areais ora corria apertado entre rochedos altos como fortalezas. No Verão, mal se via: apenas uma nesgazita tão estreita que dava a impressão que, de um salto, se podia passar para o outro lado.

Renato tinha pena de o ver assim. Sabia porque lho dissera o Chico Falinhas – que não lhe davam de beber. Sem piedade, os homens ainda lhe roubavam a água para engordar o milho.

O que vale, menino, é que os rios são muito amigos uns dos outros e ajudam-se como podem. O Douro, se não fosse isso, no Verão nem tinha forças para chegar ao mar…

O pequeno tinha medo que eles se zangassem e lhe retirassem a ajuda.

Não tenha medo, menino, – tranquilizava-o o Falinhas – só os homens é que se zangam; as coisas, não

Renato gostava de estar ao pé do Falinhas.

 O primeiro podador da região

O Chico Falinhas era um sábio. Sabia tratar dos bichos, e era pedreiro, caiador, cesteiro e, sobretudo, podador, «o primeiro podador da região», diziam. Se uma vinha estava fraca, iam ter com ele, que ele determinava logo quantos ramos era preciso cortar, para a fortalecer, e o género de poda que convinha.

Estes almas do diabo puxam por elas como se fossem novelos e, depois, ainda se queixam. Só falta porem-lhe as raízes à mostra

E ralhava, que ele gostava de ralhar, mas ninguém fazia caso. Estava sempre pronto para tudo e, pagassem que não lhe pagassem, podiam contar com a sua ajuda.

Só para cavador é que não sirvo

A isso se recusara sempre, mesmo quando era novo. Ninguém o convencia ainda que escasseasse o trabalho e a fome lhe rondasse a porta.

Não posso. Era como se estivesse a dar facadas na minha mãe depois de morta.

Então tu não vês, ó Falinhas, que se a gente não cavasse nem as novidades nasciam?

Mas o Falinhas não se deixava convencer.

Ná, ná, a terra fecha-se porque a maltratam. Antigamente…

E punha-se a falar de um tempo em que a terra dava tudo sem que fosse preciso trabalhá-la. Os homens eram simples e bons e as árvores curvavam-se para lhes depor, nas mãos, os frutos doirados.

Domingos Monteiro, O Caminho para lá (Lisboa, 1947) | Imagem