O Campino: aristocrata das lezírias do Ribatejo
O Campino
“Tem características raciais o campino das lezírias do Tejo, onde constitui núcleo populacional aparte e oriundo, talvez, dos fenícios: morenos, até pela ação do sol, cabelo negro, ainda que abundem também os louros, fortes e ágeis de movimentos.
Vestem jaqueta negra ou castanha, com colete encarnado, calção azul, meia branca, feita a agulha – obra de suas mulheres, noivas ou filhas – e sapato de bezerro.
Cobrem a cabeça com barrete verde e, nos dias de festa, adornam o fato com botões dourados, ou de prata, e o escudo da ganadaria ou o brasão do amo, se este é da nobreza, sobre o coração, orgulhosamente.
Vivem em cabanas armadas nos serrados onde pastam os touros à sua guarda e, uma vez por semana, visitam o «monte», ou a aldeia mais próxima, para levar o que hão-de comer no seu isolamento: azeite, grão ou feijão, farinha de trigo ou pão já amassado e cozido.
Metem tudo em alforjes, que colocam sobre os ombros ou na sela do cavalo, tal como a pele de bezerro que o cobre e como a manta que os defende do frio e da chuva.
Dança o Fandango…
Seu baile é o fandango, jogo difícil dos pés ao ritmo do harmónium, fixos os braços pelas mãos metidas nos sovacos.
E bailam em desafio, alternando em prodígios que dois exibem à compita até que os do conclave outorgam a vitória ao mais ágil e de maior fantasia nos passos.
Cavaleiros por instinto e hábito, «campinam» em recortes e comandam, e desafiam e castigam os touros com a vara que manejam habilmente.
Quando correm os touros, entusiasmam-se como os mouros «correndo a pólvora», excitam-se, eles e os cavalos e os touros, em tropel magnífico, constituindo cavalgada heroica em que se confundem os homens, os touros e os cavalos, cada qual mais rápido e mais bravo.
Nascem entre choupos e salgueiros, nas lezírias e nos mouchões, e aprendem de tenra idade a arte de atirar pedradas certeiras aos touros que se desmandam enquanto o maioral, seu avô ou seu pai, dormita no cabanão.
Crescem ao sol, e ao vento e à chuva, a intempérie e na solidão, longe dos centros e afastados dos homens. Por isso são de poucas falas, e de poucos amigos, além dos touros, companheiros de todos os dias, de todas as horas.
Para ler: O Ribatejo e o seu Folclore | Textos e opiniões
A dedicação ao touro bravo
Conhecem-nos por seus nomes, e sabem os do pai e das mães, e estudam-lhes o carácter, e avaliam-lhe a bravura.
Apreciam as reações dos bezerros na apartação das mães, quando da desmama, depois quando o ferro em fogo os marca com as letras da ganadaria, e os números, e as ovelhas sofrem o corte particular, o sinal, e quando a vara do picador os castiga para a prova da tenta.
Curam-nos e cuidam que se não inutilizem nas lutas que travam uns com outros, para disputa da fêmea ou da supremacia de mandão. Finalmente, um dia enjaulam os que hão-de ser lidados nas arenas, e acompanham-nos.
Se saem bravos, grande alegria tem o campino; se mansos, à volta ao campo, metem-nos à charrua, na difícil «amansia na brocha» e o que não pôde ser touro fica sendo «boi da terra», e passa a ser olhado com desprezo, pelo menos com tristeza, porque o campino sofre com o fracasso, com a perda do amigo.
Para ler: Ribatejo – antiga província de Portugal
O «boi da terra»
Passa o «boi da terra» aos cuidados dos que a lavram, embora ofereça sempre a vantagem da educação que o campino lhe deu, trabalhando de sol a sol, sem descanso, e comendo de manadio, dormindo à intempérie.
Mas já não se defende dos homens, como antes fazia, quando era bravo e se sabia forte para lutar.
E o campino, aristocrata da lezíria, olha dos pontos mais altos os que trabalham nos baixos, os mansos. Os seus cuidados vão agora para os que ainda podem ser touros bravos.
E quando a cheia impetuosa ameaça os gados, o campino trata de salvar antes os touros, os bravos, os seus amigos.
E como ele procedem os seus, a sua gente, toda empenhada pela sorte da ganadaria brava, que é o orgulho do campino, a sua honra.
Rogério Perez”
Fotos de Manfredo e José Vanzeler Palha
In “Panorama – Revista Portuguesa de Arte e Turismo” – número especial – 1945 (texto editado e adaptado)