Lisboa pelo Natal (1908) | Usos costumes e tradições
Lisboa pelo Natal
“«Ande o frio por onde andar, pelo Natal há-de chegar» assim se costuma dizer desde que há frio e desde que há Natal.
É o inverno, e ele cá está nesta Lisboa temperada, que não lhe vale a sua exposição ao sul, para que o lisboeta deixe de tiritar com frio, como qualquer siberita, ainda que o termómetro marque tantos graus acima de zero como na Sibéria os marca abaixo.
É o inverno, e tudo muda em Lisboa.
A população recolheu toda à cidade, chegaram os últimos banhistas, acabaram-se as vilegiaturas, regressa-se das viajatas pelo estrangeiro, as ruas têm mais movimento, de dia, à noite, a todas as horas.
Abriram-se os teatros, e rodam os trens e automóveis para S. Carlos, para D. Maria, para o D. Amélia para a Trindade e Ginásio, para o Coliseu, para toda a parte onde haja espetáculo, que o lisboeta não sabe que fazer à noite, se não houver divertimento. Feliz lisboeta!
É o inverno, e logo pelas ruas se ouve apregoar as castanhas, quentes e boas a escaldar, o marmelo assado no forno, as azeitonas novas, a broinha de milho com erva-doce e o casal de perus, o mais característico, porque nos diz que está o Natal à porta, sem ser preciso consultar a folhinha.
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É o inverno, em cheio, com os dias de 8 horas e as noites uns anos; dias sem sol, noites sem luar, e os poetas tristes, tão tristes como os perus soltando os seus melancólicos grus grus ocarinos; tristes estes pela sorte que os espera na mesa dos ricos, tristes aqueles porque os não têm à sua mesa.
E pelas ruas os bandos de pernaltas lá vão saltitando pela lama, transidos de frio, gru-gru, apanhando o seu carolo com a cana do vendilhão, que apregoa aos quatro ventos é casale de piruns.
Outros vão mais comodamente para o suplício ao colo de moços.
Vão de presente dar as boas festas às pessoas de representação, como ia o peru de Nicolau Tolentino com estes choramingados versos:
Airoso, gordo peru
É hoje o meu presente
Traz inda as penas molhadas
Com o pranto da minha gente.
A quantos sucederá o mesmo: não o comem para o mandarem de presente, como melhor empenho para aplanar dificuldades de qualquer pretensão, se o potentado não for como aquele exigente juiz do Bairro Alto, que não se contentava com presentes de cá cá rá cá.
O peru, por este tempo sem grande influência na nossa sociedade, não só pela boa canja que lhes fornece, mas pelas provas de gratidão que lhes permite.
O peru paga com a vida os favores concedidos a outrem; conquista a benevolência de muitos, e até os pais tiranos se comovem se o pretendente à mão da herdeira lhes mandar um casal de perus.
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Na véspera do Natal a canja fumegante convida a fazer a meia-noite, tradicional uso no seio das famílias, pretexto para uma ceia obrigada a peru e a boroas com seu copinho de aguardente de erva-doce.
Alguns não chegando aos perus, contentam-se com a boroa e a aguardente, mas faz-se a meia-noite, depois da Missa do Galo, em que toca a primitiva e alegre gaita-de-foles, a tocariam os pastores no presépio de Belém saudando o nascimento do Redentor.
Por altas horas, na noite de Natal, ouvem-se repicar os sinos ecoando pela calada os seus toques, a um tempo alegres e melancólicos, anunciando o nascimento de Jesus, que vem encher de consolações o coração dos crentes.
Enchem-se nas cidades as igrejas, nas aldeias os ermitérios. Nestes há mais poesia; naqueles há mais divertimento.
Lisboa, se não conserva intata a crença de seus maiores, desenvolve a paixão dos gozos, de modo que se não vai à Missa do Galo com aquela fé que animava nossos avós, vai, pelo menos, procurar uma distração diferente das que ordinariamente a divertem e só encontra uma vez por ano.
Distração e namoros porque hoje como dantes, a Missa do Galo é um grande refúgio para namorados, única tradição que tem resistido a todos os tempos.
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Que chova ou vente eles lá vão:
«Na esteira de esquiva dama
«Que de pedrinha em pedrinha salta.
embrulhada em seus abafos, e eles de golas de sobretudos levantadas, de mãos nas algibeiras, luzindo-lhe o lume do charuto, como farol no mar da vida, por entre a escuridão da noite.
São os maiores devotos da Missa do Galo.
(…)”
Caetano Alberto
in “Ocidente”, nº1080 – 1908 (texto editado e adaptado)