Grande Cancioneiro do Alto Douro, em 3 volumes
Grande Cancioneiro do Alto Douro
O Grande Cancioneiro do Alto Douro é uma obra de recolha monumental, com 1.150 músicas (pautas) e letras de canções tradicionais da Região, englobando 3 grandes volumes, cada um com 640 páginas, perfazendo um total de 1.920 páginas.
As canções foram recolhidas no Alto Douro, donde o autor é natural, em cerca de 50 anos, nomeadamente durante a época das vindimas, que atraíam ‘cardanheiros’ de todas as regiões circundantes, com destaque para zona do Montemuro e do Marão: Resende, Cinfães, Marco, Baião, Castro Daire…
Volume I
Este volume I contém um estudo histórico-literário inicial sobre as principais características histórico literárias da lírica medieval (séc. XII) galego-portuguesa – muitas das quais ainda se conservam atualmente, como é o caso dos géneros (diálogo com a mãe, romarias…) ou do paralelismo (ruralidade, iniciativa feminina, alternância vocálica, leixa-prem, número par de estrofes para dividir em dois os dançarinos, refrão…).
De modo geral, todas as cantigas do volume I (Cantigas da Vinha) são também cantos do trabalho. Estas do segundo volume estão mais dispersas por várias atividades da quinta.
Uma quinta era composta de vinha, produtora do vinho, e campos, donde era retirado o sustento diário de pessoas e animais e, por vezes, algum movimento de vendas (hortaliça, fruta, porcos, galinhas…), mas que não tinha o significado económico da venda do vinho.
O caseiro da quinta tinha de equilibrar os trabalhos da vinha com os do campo, de modo não só a garantir o pão aos trabalhadores ‘diários’, que hoje diríamos efetivos, mas também a otimizar e rentabilizar os recursos da terra e da mão-de-obra.
A época de mais trabalho e proventos era a Vindima. Depois, era a cava da vinha, que exigia bons braços.
A cava do campo também exigia força e, geralmente, o caseiro assistia com um pipo de vinho de manhã e de tarde, como também era hábito na cava da vinha.
A cava da vinha era feita com a enxada de dois ganchos, ao passo que a cava do campo era feita com uma boa sachola. Ambas as ferramentas (se calhar, hoje, chamam enxada às duas) tinham de ser bem encabadas.
O calçado de trabalho mais usual eram as botas cardadas, mas o mais prático eram os socos: abertos e fechados. Ambos tinham base de pau:
– os socos fechados resultavam da reciclagem das botas velhas que já não merecessem novas meias-solas;
– os socos abertos tinham cabedal de raiz e deixavam o calcanhar (ou os meiotes) ao léu, ou quase.
Os socos das mulheres eram tão práticos e quase tão delicados como chinelas.
Os socos eram uma obra-prima em economia e conforto: os pés andavam sempre quentes, mesmo sem meiotes (ou catúrnios); e, se entrava água ou terra, facilmente se sacudia…
Conheci pessoas que passaram toda a vida «encabadas nuns socos» – na expressão felicíssima do nosso João de Araújo Correia. Sobretudo os caseiros, mas mesmo gente com posses.
Pode estar aqui a mais válida razão prática para a carestia de corridinhos no Alto Douro.
No Alto Douro existia uma grande clivagem social: de um lado, a minoria dos proprietários das quintas e, do outro, a multidão faminta dos que nada tinham, a não ser a força braçal do sobrevivente e a resistência anímica do herói – ou do escravo, que é o mesmo, na prática.
Quando as quintas precisavam de trabalhadores, o caseiro rogava: “tantos homens, a tanto por dia, secos”.
A palavra passava e no dia aprazado, lá estavam os trabalhadores. Recebiam ao sábado e, feito o trabalho, voltavam ao ‘stand by’ da procura do pão-de-cada-dia para si e para a filharada.
Sem direito a estar doente e a esperança de uma reforma apenas apareceu com Marcelo Caetano, em fins dos anos sessenta…
O dia de trabalho ia do romper do dia até ao pôr do sol: 6 horas se a luz durava 6 horas, 10 horas se a luz durava 10 horas.
Geralmente o trabalho rural era ‘a seco’: a quinta não dava comida. Dava, sim, uma sardinha de manhã (ou uma dúzia de azeitonas) para os trabalhadores comerem com a broa que sempre levavam de casa, comprada a crédito (o merceeiro punha no rol) e paga na hora de receber. (Entretanto, a sardinha tornou-se folclore de ricos e hoje é paga a preço de ouro).
O salário variava segundo a rígida lei da oferta e da procura: a época do fim da vindima era a que pior pagava e, devido ao mau tempo, não havia trabalho em lado nenhum.
As vinhas entravam no Outono e havia que esperar que as folhas caíssem para se fazer a escava, que era uma poça quadrada ao redor de cada videira, para captar as folhas e armazenar a água das chuvas que iam caindo.
Só restavam (e nem em todas as quintas) os trabalhos nos campos: cavar e estrumar a terra para plantar os produtos hortícolas, que davam para gasto de casa e, às vezes, para vender nas praças e feiras.
Depois aproximava-se a Primavera.
Então, campos e vinha, exigiam cuidados diários: poda, erguida, sulfato, enxofre, espampa, mais sulfato… até se chegar ao pino do Verão.
Durante o amadurecimento das uvas, até à vindima, a falta de trabalho era uma constante no Alto Douro.
Então, muitos trabalhadores rurais nossos engrossavam a oferta de mão-de-obra, juntamente com os espanhóis da raia do Duero, e iam em grupos para as malhadas e ceifas do Nordeste Trasmontano, donde traziam o mimo dos filhos, o ‘rolão’ do Tua, e muitas cantigas, sobretudo belíssimos rimances, alguns presentes neste livro.
Por isso, quando se pensa nos heroicos saibradores das íngremes encostas, a ferro e pá, o nosso pasmo entranha-se numa cadeia de meditação poderosa e esmagadora sobre a dificuldade em equilibrar o Pão sacrificado do Homem com a ditadura da Natureza duriense. Mas nunca faltava uma cantiga – com a alegria ou a tristeza da hora.
E uma subclasse social emerge: a dos caseiros.
É rogador e administrador; provedor e conselheiro, por vezes; mão amiga numa hora de fome, não raro.
O caseiro é muito mais do que o equivalente clássico do engenheiro agrícola destes tempos de escolaridade obrigatória: é o fiel da balança socioeconómica do humanismo possível.
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Volume II
Tunas Rurais – Natal, Reis , Embalar – Rimances – Cantares Religiosos – Cantares de Trabalho – Cantares do Desafio
O Douro foi sempre uma terra mimosa, de vinha, campos, fruta e cantigas.
Nas quintas cantava-se muito: no arranjo da casa, nos lagares, nos armazéns, na cozinha, nos campos, nas vinhas e, também, pelos caminhos.
Nas Festas e Arraiais do coração da Região ([Nossa Senhora do] Socorro, na Régua, e [Nossa Senhora dos] Remédios, em Lamego) marcavam presença todos os artistas populares das redondezas, com as suas concertinas, harmónicos, gaitas de beiços, bandolins, cavaquinhos, clarinetes e violinos, acompanhados ao violão, ferrinhos e bombo.
Mas eram as Vindimas que enchiam os céus com as infinitas revoadas de cantigas que, como andorinhas de setembro, eram trazidas pelas «rogas de cardanheiros» do Montemuro e serras do Douro-Sul (Resende, Cinfães, Castro Daire…), dos contrafortes do Marão e serranias ao Norte e, até, da Galiza… pelo que o nosso Cancioneiro é dos mais ricos de todo o País.
Hoje, nas vindimas já não se canta! As modinhas antigas estão a perder-se irremediavelmente!
As vindimas são feitas por ‘robots’, com articulações programadas e eficientes, mas sem Alma.
Com a entrega das uvas às cooperativas e a mecanização, a vinha perdeu para sempre o seu Génio artesanal e mítico de Festa e as máquinas trituraram a Poesia do Homem do Douro.
Desapareceram as pousas e a presença da sua música, que adocicava e sacralizava o mosto do nosso Vinho Fino.
Há o dever moral e intelectual de defender e promover o que é Património nosso, de raiz que ninguém poderá arrancar: o seu Rio, as suas filigranas de bardos, a sua Gastronomia, a sua Música (e Poesia) tradicional, em grande parte herdadas de Santiago de Compostela nos primórdios de D. Afonso Henriques.
O Vinho… além de ser atualmente combatido pelas multinacionais como uma maldição alcoólica… já a globalização o copia em várias outras regiões do Mundo, com a bênção da Europa.
Mas a Cultura não está dependente do Espaço nem do Tempo – é eterna.
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Volume III
Contexto histórico, duriense, poético, musical e europeu
Este volume contém todas as noções históricas, poéticas, musicais, folclóricas, sociológicas, etc. que explicam e coroam os conteúdos e contextos poético-musicais dos primeiros dois volumes.
Além das referências à influência galego-portuguesa das origens compostelanas, faz o enquadramento destas artes com a Fundação do País no séc. XII, situando no Douro (Britiande e Cambres – Lamego) D. Afonso Henriques, com Egas Moniz e os quatro (!) conventos da Ordem de Cister (de Borgonha) aí fundados para apoio socioeconómico, social e religioso à expansão da cruzada para sul do primeiro rei da nossa dinastia de Borgonha.
Os conventos trouxeram a vinha de Borgonha. O vinho fino (do Porto) provém do vinho licoroso de missa solene cisterciense.
Prefácio do volume III
Recuperar a “Arca Perdida”
Este terceiro volume é uma cúpula: dá maior profundidade aos dados de enquadramento histórico e remata aspetos do conteúdo poético-musical do primeiro e segundo volumes do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO.
O texto de carácter histórico-literário e musical que introduz o primeiro volume e as resumidas observações culturais que acompanham muitas cantigas têm aqui um acabamento mais panorâmico e sistematizado.
Assim, as quase 1200 cantigas, aí apresentadas de forma sincrónica, têm agora uma visão diacrónica e abrangente, que situará o Alto Douro não só nas suas origens musicais, etnográficas e poéticas, mas também políticas, culturais e históricas – borgonhesa, compostelana, ibérica… além de românica.
Por isso, tem de ser pluridisciplinar esta panorâmica final:
– Para além das músicas e das letras, o cancioneiro pressupõe um mundo de cultura e atividades, desde a dança aos instrumentos musicais, desde os trabalhos às romarias, desde os rituais de sedução às crenças, desde a métrica à simbologia…
– Retrato ancestral e íntimo da alma do nosso Povo, as cantigas revelam magicamente a esperançada ou angustiada Hora do homem do Douro – de algumas alegrias e de muitos desesperos.
– Saber ‘ler’ em profundidade essa Hora é uma exigência cultural da nossa época, em que a Epopeia duriense é reconhecida como Património da Humanidade.
Torna-se indispensável
– recordar Egas Moniz e os Pioneiros (ibéricos, galegos, portucalenses, durienses, borgonheses…) à luz da história político-militar;
– recordar a Ordem de Cister (“ora et labora”) à luz da religião, da cultura, da arquitetura e da organização empresarial das quintas; recordar os cavadores, os lavradores e os artífices… os sonhadores e os artistas… os poetas, pintores, pedreiros-escultores, músicos… que, nos jacobeus, iam a Santiago de Compostela procurar o sentido e a força da Vida, que é Espírito e Matéria.
O Alto Douro é um Projeto e uma Herança – de carácter nacional, ibérico e europeu – que nós, durienses de hoje, nos honraremos de conhecer, preservar, partilhar e difundir, numa permanente tentativa de recuperação da nossa ‘arca perdida’, da aliança entre a Montanha e a Água, o Suor e a Poesia, a Música e o Vinho.
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Altino Moreira Cardoso (textos editados)