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Folclore e Política – As Políticas do Folclore

 

No Centenário da Implantação da República*

Nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, existiu um “grupo de danças” que então apresentava coreografias assaz curiosas, alegadamente baseadas no folclore minhoto. Entre outras bizarrias, dançavam uma chula na qual, os dançarinos, empunhavam foices e martelos, estilizados, construídos em madeira e, à medida que volteavam, faziam sobrepô-los numa clara alusão ao símbolo mundialmente adoptado por todas as organizações comunistas e a própria URSS, desde os tempos da chamada “social-democracia revolucionária”.

Pretendiam, dessa forma, transmitir a sua ideologia assente na “aliança entre operários e camponeses”, idealizada por Karl Marx e Friedrich Engels no seu “Manifesto Comunista” como forma de atingir uma sociedade socialista.

Tal como sucedia em relação às coreografias, também os trajes eram estilizados a partir de uma versão dos trajes domingueiros minhotos, já de si adulterados. As saias das moças não iam além de duas barras de cor vermelha e amarela, sobrepostas num pano escuro.

Tratava-se, como se pode adivinhar, de um “grupo de danças” que, em complemento com outras iniciativas do género, se inseria numa estratégia de propaganda que era então desenvolvida por um pequeno partido de inspiração maoísta. Esses tempos ainda são recordados por algumas pessoas que os viveram, incluindo alguns dos seus componentes e o próprio ensaiador que ainda se mantêm nestas lides.

Para além de algumas tentativas esporádicas de utilização do folclore para fins políticos, esta limita-se na maior parte das vezes à sua participação em manifestações de carácter político e sindical, com especial preferência para os grupos de zé-pereiras devido ao troar dos seus bombos.

A razão do desinteresse que a actual classe política manifesta em relação ao folclore prende-se directamente com a utilização que lhe foi dada ao tempo do Estado Novo, associando-a aos chamados “três efes” que, supostamente, constituíam a sua trilogia – Fado, Folclore e Fátima – e como tal consideradas “formas de alienação do povo”.

Apesar de, ironicamente, algumas dessas “formas de alienação” terem adquirido maior relevo nos tempos actuais, como sucede com o futebol, cujos jogos passaram a realizar-se indiscriminadamente em qualquer dia da semana, e a sua discussão a dominar quase todos os momentos da vida das pessoas.

E, reveladora do desprezo a que o folclore do povo português é votado pelo actual regime político, é notória a sua omissão dos grandes eventos culturais e da programação televisiva na estação oficial, bem assim a forma pejorativa com que frequentemente o termo folclore é utilizada.

Um rancho de Castelo Branco actuou no “Primeiro Concurso Nacional de Folclore” que se realizou em 1958, em Lisboa. Arquivo Fotográfico da CML

O folclore ou melhor, a sua representação através de grupos folclóricos propositadamente constituídos para esse fim, remonta aos finais do século XIX quando um “grupo de lavradeiras de Ponte de Lima” se deslocou ao Porto, a convite dos bombeiros portuenses, conforme nos dá conta o jornal humorístico “O Sorvete”, na sua edição nº. 123, de 4 de Setembro de 1892. Doze anos depois, foi constituído o Rancho das Lavradeiras de Carreço, em Viana do Castelo.

O seu aparecimento não foi certamente alheio ao espírito cívico que então se manifestava através da criação de inúmeras associações com as mais diversas finalidades e jornais locais, a maior parte das vezes inspirada na propaganda republicana quando não mesmo obra sua, levada a cabo através das lojas maçónicas então constituídas.

De resto, apesar do claro predomínio dos sectores monárquicos e católicos na maior parte do país, caracterizado ainda por uma sociedade marcadamente rural, os republicanos dispunham a sua base de apoio numa burguesia fixada nos meios urbanos, inclusive nas pequenas cidades da província. A até aí entendia a Maçonaria a sua organização, como sucedeu com o Grande Oriente Passos Manuel, mais conhecido por “Maçonaria do Norte”, que integrou nomeadamente a Loja “Fraternidade” de Viana do Castelo e o Triângulo nº. 28, de Ponte de Lima.

A foto, publicada na Ilustração Portugueza, de 1 de Março de 1926, mostra “meninos da primeira sociedade” mascarados com trajes minhotos.

Com o advento da I República, passaram as exibições do folclore a ser aproveitadas no contexto das “paradas agrícolas” de onde se derivaram os chamados “cortejos etnográficos”, exposições industriais e ainda nos congressos regionalistas que à época se realizaram já então com o propósito de debaterem a criação de regiões administrativas – províncias – em substituição da circunscrição distrital herdada da monarquia constitucional e que ainda vigora.

Em relação aos trajes tradicionais, passou o seu uso a ser incentivado junto dos meios burgueses da capital como máscara de Carnaval, havendo uma especial preferência pelos trajes minhotos com que se vestiam as crianças.

Com esse propósito, promoviam-se concursos e bailes de mascarados nas colectividades de cultura e recreio, incluindo nas casas regionais que entretanto foram aparecendo, inicialmente frequentadas por uma espécie de elite que, apesar de migrada, ainda dispunha de tempos livres e meios para poder consumir, o que não sucedia com os seus conterrâneos sujeitos a uma vida miserável de escravidão.

O xé-xé foi uma figura típica do Carnaval alfacinha até aos finais do século XIX. Na imagem, seguida por vários foliões entre os quais se distingue um galego e uma ovarina. Arquivo Fotográfico da CML

A vulgarização do uso do traje regional como máscara carnavalesca teve sobretudo a ver com a necessidade de suprimir o incómodo xe-xé, zombando de tudo e de todos, figura brutal que em tudo desagradava aos políticos e à burguesia citadina que não lhe poupavam o seu atrevimento jocoso e a crítica mordaz.

Porém, havia de ser o Estado Novo, designação pela qual se tornou conhecida a II República, aquele que maior atenção prestou às coisas do folclore. Contudo, não constituiu seu propósito identificá-lo e preservá-lo da mesma forma como actualmente o entendemos, apesar de ter existido uma forte tendência com vista à sua musealização.

Procurou antes, como aliás era próprio da época a outras latitudes, aproveitá-lo para os seus propósitos propagandísticos, quer na divulgação das potencialidades turísticas que o país oferecia, no contexto de uma indústria então nascente, como ainda na educação do povo nos valores pátrios e comunhão com a sua própria identidade.

A partir de meados do século passado, os “ranchos folclóricos” multiplicaram sobretudo através da organização das “casas do povo”. Para tal, o Estado Novo utilizou os serviços do Ministério da Educação Nacional, o Secretariado da Propaganda Nacional, a Mocidade Portuguesa, a Junta Central das Casas do Povo, a influência dos governadores civis e ainda a acção da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Organizou feitas e concursos.

E, através de intelectuais de renome identificados com o regime, apurou as músicas, alterou e inventou coreografias, modificou os adornos dos trajes e introduziu uma vertente mais técnica e artística à sua representação. Em resumo, por mais bem intencionada que tivesse sido a sua intervenção neste domínio, os responsáveis pelo Estado Novo acabaram por produzir estragos irreparáveis ao folclore.

Aspecto de um festival de folclore, em 1962, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. Repare-se atentamente na exibição das moças. Arquivo Fotográfico da CML

Por falta de pesquisa e método de análise, a maior parte das pessoas passou a dar como genuíno aquilo que não é mais do que uma versão estereotipada produzida pelo Estado Novo. E assumem-no com tal convicção que passou a constar dos seus próprios critérios de avaliação. E, no entanto, são visíveis em quase todas as coreografias e não só, as marcas deixadas pela intervenção que foi feita, quando não se trata mesmo de puras invenções.

O mesmo se verifica com o traje, os instrumentos que são utilizados, as músicas e letras que compõem o reportório e os moldes em que decorre a própria apresentação. De resto, é notória a insistência em mencionar os prémios alcançados, os concursos em que participaram, as organizações em que se filiam e os países que percorreram em digressão em vez que descreverem aquilo que realmente interessa ao público e que consiste naquilo que vão representar.

Paradoxalmente, o preconceito com que actualmente o folclore do povo português é encarado, mesmo em relação ao folclore de outros países, não impediu o actual regime político de ter recuperado a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), alterando a sua designação para Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores (INATEL), apesar de à partida ter sido constituída à semelhança da sua congénere italiana Opera Nazionale Dopolavoro.

E, justiça seja feita, aquela organização continua a manter um departamento para o Folclore, para além de numerosas iniciativas do maior interesse na valorização cultural e na ocupação dos tempos livres dos trabalhadores e da população em geral. E, isso é tanto mais importante quando porventura nunca foi tão necessário manter a alegria no trabalho!

* Artigo escrito e publicado, inicialmente, em 2010, por ocasião da celebração do centenário da implantação da República em Portugal.

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Bibliografia: GOMES, Carlos. A Maçonaria em Ponte de Lima. O Anunciador das Feiras Novas. Ano XXIV. Série II. 2007. Ponte de Lima

Carlos Gomes, Jornalista, Licenciado em História