Folclore e o movimento da Terra | Opinião
Folclore: o Movimento da Terra
Na primeira metade do século dezoito e ao longo de quase quinze anos, as obras do grandioso convento de Mafra atraíram àquela região perto de cinquenta mil operários oriundos das mais diversas proveniências que ali participaram na sua construção, tendo ainda sido destacados para o local cerca de dez mil soldados incumbidos de vigiarem a obra.
Este acontecimento constituiu para a época um extraordinário movimento de populações que teve naturalmente as suas repercussões nomeadamente na forma de viver das gentes locais, até então habituadas a viver em pequenas comunidades dispersas.
Durante todo o tempo em que decorreram os trabalhos e principalmente nos escassos momentos de lazer de que dispunham, essa imensa quantidade de gente convivia entre si e com as populações das localidades em redor, a qual aliás assegurava em grande medida o aprovisionamento dos bens alimentares aos trabalhadores do convento de Mafra.
A História registra a grandiosidade da obra e as decisões do monarca mas esquece-se com frequência de mencionar o quotidiano da vida do povo e dos trabalhadores que ergueram o monumental convento.
E este, à falta dos meios de distracção que a sociedade moderna nos oferece, naturalmente convivia à sua maneira e de acordo com os costumes da época, cantando e dançando como sabiam, ao som dos instrumentos que traziam, divertia-se com os jogos que então se conheciam e, sempre que podiam, deslocavam-se às festas e romarias das aldeias em redor.
Interação de culturas regionais
Este contacto entre populações de diferentes origens com usos e costumes diferenciados naturalmente facilitou uma interacção de culturas regionais e locais que se influenciaram mutuamente e sobretudo na região de Mafra que constituiu o ponto de encontro e de convívio entre essa enorme quantidade de gente.
Da mesma forma, aliás, que algum tempo depois as invasões francesas viriam a deixar-nos a contradança que afinal de contas, não era mais do que a tradicional dança a que os ingleses designavam por country dance.
São numerosos os exemplos que poderíamos mencionar para demonstrar como o folclore de um povo não constitui uma realidade estática mas, antes algo que evolui, modifica-se e interage com costumes diferentes em consequência do encontro entre povos e culturas.
Desde os tempos mais remotos, o Homem ergueu santuários no cimo dos montes consagrando culto a antigos deuses pagãos.
Com o decorrer do tempo, muitas dessas divindades foram substituídas e deram lugar a ermidas cristãs para onde o povo acorre em devoção e em redor das quais se junta em ambiente de festa, cantando e dançando como só ele sabe fazer.
E as modinhas que até então eram apenas usadas num determinado local espalham-se pelas aldeias em redor e por vezes mais longínquas levadas por romeiros ou simples forasteiros de romaria.
Emigração e êxodos internos
A industrialização verificada na segunda metade do século XIX e, sobretudo, a construção das principais linhas de caminho-de-ferro, provocou um autêntico êxodo das populações rurais do interior para os grandes aglomerados urbanos, principalmente para Lisboa.
O atraso da agricultura associada a fenómenos de crise provocados nomeadamente pela filoxera na vinha levou inclusive a uma grande vaga de emigração, sobretudo para o Brasil.
Para onde quer que foram, as pessoas levaram consigo os seus hábitos, a sua maneira de ser e de divertir-se e, como não podia deixar de suceder, uma enorme saudade pela terra que eram forçados a deixar para trás.
E, onde se fixaram, promoveram sempre formas de encontro e de convívio entre compatriotas e conterrâneos. E foi assim que surgiu o associativismo regionalista vulgarmente conhecido como “casas regionais”.
Mas o folclore interage de igual modo com povos e culturas muito distintas, ultrapassando fronteiras e as próprias barreiras que a natureza estabeleceu.