Falar saloio | Usos, costumes e tradições
Falar saloio
A fala bem típica do çalaio originário do moçárabe, perante a industrialização cada vez maior da sociedade e a urbanização citadina absorvendo cada vez mais o espaço rural e os seus habitantes cujos usos e costumes vão falecendo de maneira célere assim se perdendo toda a tradição etnográfica do Termo, ainda assim vai sobrevivendo no falar dos mais idosos, cuidando de a transmitir aos mais novos e a legar aos diversos ranchos folclóricos e etnográficos que, a despeito das maiores dificuldades económicas com que se debatem, conseguem manter viva a cultura “sui-generis” do Termo de Lisboa que é a região etnograficamente demarcada Saloia.
Com efeito, o falar saloio é ainda preservado pelos mais antigos na Murteira, em Caneças, em Bucelas e em Lousa, com um e outro foco esporádico nesta e naquela aldeia resistente aos modernos usos e costumes urbanos, por norma descambando em vícios novos por lhes faltar a argamassa das regras morais de conduta ancestral de uma sociedade tradicional rural, que ao absorvê-los inevitavelmente se desintegrará e fenecerá.
Pois sim, apesar de o falar saloio parecer todavia não é linguajar algaraviado, antes, linguagem cujos vocábulos insistem no português arcaico que possui tanto de verbos gregos quanto latinos, e, principalmente no vocabulário do Termo, árabes.
Originalmente este “linguajar” seria puro arábico, e após a Reconquista cristã do Termo e em contacto com o latinismo borgonhês, portanto, franco, tornar-se-ia arcaico face às novas falas da urbe tomada pelo estrangeiro.
Todavia e enfrentando os posteriores séculos de civilização, o saloio manteve-se fiel às raízes arábicas e a sua linguagem, hoje rústica, é bem um monumento mudéjar, cujo apogeu teria sido a primeira metade do século XVI, aquando o “homem do campo” (saloio) entrou na literatura e nas falas da cidade através do Teatro vicentino.
A origem do falar saloio
A língua saloia terá passado do árabe ao mudéjar e deste ao português arcaico (luso-galaico) que chegou até hoje.
No seu vocabulário ainda se encontram termos arábicos, como “azebro”, e mudéjares, como “almácega”, “almácica” ou “almaça”.
A vastíssima Literatura de Cordel do século XIX deu ao falar saloio um efeito cómico pela estropiação de palavras e incorrecções sintácticas a par de alterações fonéticas. Vale por ter trazido a terreno termos já há muito caídos em desuso, com a intenção de reproduzir o falar meridional ou estremenho do saloio.
Por essa Literatura vislumbra-se também a sabedoria saloia, orbitando entre o jocoso e o grave, a par de teimar manter-se independente das coisas e loisas das gentes finórias da cidade, mesmo que, anacronicamente, certamente por sobrevivência, participando indirectamente da vida delas, resistindo assim à «colonização» do campo pela cidade, pois que terminando a agricultura a indústria pouco mais poderá sobreviver, assim também o núcleo citadino.
Tamanha resistência saloia poderá ser igualmente interpretada como resquício subconsciente da original marginalidade a que foi remetido o árabe após a Reconquista, sendo arrojado para fora de portas ou de muralhas da cidade.
Tem-se aí o conflito entre o agrário e o industrial, cada vez menor por ambos os tipos se sedentarizarem numa sociedade altamente tecnológica e tecnocrática, desfavorecendo a sobrevivência das profissões tradicionais, a maioria manuais, assim como os usos e costumes tradicionais ou folclóricos, no sentido filológico exacto de folclore significar tradição.
Expressões desaparecidas ou transformadas
Na comédia O Saloio Cidadão alinharam-se, entre muitos, os seguintes desaparecidos ou hoje transformados ditos: “galinha de monturo não quer covo”; “por linha lhe vem a tinha”; “filho de burro não pode ser cavalo”; “ao médico, ao confessor e ao letrado deve-se falar toda a verdade”.
Ou, então, a bem gostosa anedota: um taful da cidade, ao encontrar uma saloia alcandorada no seu jumento, com um longo cotejo deles atrás, carregados de trouxas de roupa, atira-lhe o seguinte remoque, ao que ela riposta, com a maior compostura e desembaraço:
– Adeus, mãe de burros!
– Adeus, meu filho!
Com essa, parece-se uma outra: caminhava um saloio com o seu jumento; encontrou-o um janota que lhe perguntou por caçoada: – Onde ides vós ambos? Respondeu o rústico: – Buscar palha para nós três.
Hoje, tudo está em mudança célere. A saída das raparigas para a cidade, como empregadas domésticas, de escritório ou de centros comerciais, e a dos rapazes primeiro para a tropa e depois para empregos no comércio e na indústria, aproximaram a cidade do campo por aquela tomado, e assim os saloios foram tomados por novos costumes e novas formas de vida, de tal maneira que hoje passam completamente despercebidos.
Memória desse Passado recente aí está o vastíssimo património etnológico e etnográfico tradicionais dos Concelhos de Odivelas e Loures, a estudar quanto antes e a preservar a todo o custo.
Sugestão de leitura: Os trajes dos saloios
Do falar arcaico no Termo e em desfecho final, recolhi alguns termos orais e escritos (para isso tendo também recorrido a algumas bibliografia da especialidade: parcialmente ao interessante estudo de Maria Isabel Ribeiro, O Saloio de A a Z, em Boletim Cultural´93, edição da Câmara Municipal de Mafra.
Esse trabalho baseia-se nos estudos anteriores de
– João de Almeida Lucas, O Falar Saloio, em A Língua Portuguesa: revista de Filologia: publicação mensal para o estudo, divulgação e defesa da Língua Portuguesa, vol. 2, pp. 65-72, 1930-31,
– e de João Paulo Freire, O Saloio: sua origem e carácter: fisiologia, psicologia, etnografia. Porto, 1948,
com os quais compus um pequeno glossário de termos como homenagem à mais singular etnia luso-arábica que já conheci e a quem a cidade tudo deve: a Saloia.
Na página seguinte, um pequeno glossário de termos saloios.