Etnografia: como estudar o passado na atualidade?
Etnografia Portuguesa
A partir de meados do século XIX, a mecanização da produção e o progresso dos meios de transporte e das comunicações produziram uma profunda alteração dos hábitos e das mentalidades.
As atividades artesanais entraram em declínio, as populações dos meios rurais deslocaram-se para as cidades e certos costumes foram caindo em desuso face às modas burguesas quase sempre importadas do estrangeiro.
O trabalhador rural trocou a enxada pela picareta e a liberdade do campo pela clausura fedorenta da fábrica. O ruído ensurdecedor das máquinas sufocou os alegres cantares com que marcava o ritmo da lavoura.
O linho deixou de ser semeado e os teares caseiros perderam o uso. As moças deixaram de bordar e até as concertinas passaram a tocar rapsódias mais dolentes a fazer lembrar as notas tristes do fado.
Em Braga, terra de velhos santeiros, surgiu uma fábrica de chapelaria que passou a cobrir a cabeça dos homens no Minho.
Para um canto da lareira ficava o velho barrete de malha, a partir de então considerado indigno de ser apresentado à sociedade.
E, com a indústria, veio o restante vestuário, a alimentação, os instrumentos musicais e, por fim, a memória dos tempos outrora vividos.
Os novos tempos trouxeram consigo novos gostos: a saia curta, o penteado de franja, o verniz e as unhas postiças, a maquilhagem e toda a sorte de bijutaria de adorno para as mulheres.
Os sapatos de verniz e o chapéu “à toureiro” para os homens, com faixa à cinta a pender quase até aos tornozelos.
Surgiu o plástico e a borracha vulcanizada. A viola braguesa cedeu o lugar à guitarra clássica.
E a sua influência foi de tal ordem que nem o folclore escapou, frequentemente apresentado como tendo feito parte de um universo que o antecedeu.
Ao mesmo tempo surgiu a música gravada e, com ela, os altifalantes que com o seu ruído estridente puseram fim à pacatez das aldeias.
Vendo acabar as antigas formas de vida de um mundo que desaparecia sob os alicerces de uma nova sociedade industrializada, eis que surgiram os estudiosos que procuraram inventariar tão precioso património.
Diversas recolhas…
Recolheram as lendas e os contos tradicionais, as receitas de cozinha e as curas das maleitas, os provérbios e as superstições, os trajes e instrumentos musicais, utensílios domésticos e ferramentas de trabalho.
E, para que o próprio povo não se esquecesse da sua própria identidade, criaram grupos de folcklore, recorrendo paradoxalmente a um estrangeirismo para designar aquilo que, afinal de contas, era genuinamente português.
Em meados do século passado, o gravador de fita magnética e o filme “super 8 mm” possibilitaram o registo do som e das imagens, dando assim um enorme impulso à recolha etnográfica.
O seu aparecimento verificou-se a tempo de obter o testemunho da última geração que vivera uma época cuja memória se pretendia preservar.
A partir de então, o estudo teria de passar a ser feito com base em fotografias antigas, documentos escritos, peças de interesse museológico e, sobretudo, no levantamento entretanto efetuado pelos investigadores no domínio da etnografia, antropologia e etnomusicologia.
Recolha junto do povo
A recolha etnográfica não é feita nas lojas de artigos de turismo, quais lojas de pronto-a-vestir “ranchos folclóricos” com trajes de lavradeira de todas as cores e feitios, quais deles os mais bizarros.
De igual forma, o método de plagiar outros grupos folclóricos, por mais antigos e conceituados que sejam, não constitui um trabalho sério, porquanto acabam por copiar os erros de que enfermam muitos daqueles que foram criados sob a influência dos folcloristas do Estado Novo.
Sem outra forma de investigação para além do acesso ao material recolhido, o trabalho do investigador requer atualmente o estudo comparado das fontes documentais e das peças museológicas, exigindo-se a compreensão da evolução histórica dos usos e costumes, tanto no que se refere às suas manifestações exteriores como ainda em relação às ideias que marcam cada época.
Sem esforço não haverá trabalho sério e honesto!
Carlos Gomes, Jornalista, Licenciado em História (texto editado)