Sobre “Etnografia da Beira” de Jaime Lopes Dias
Carta-prefácio a Etnografia da Beira
Ex.mo Sr. Dr. Lopes Dias
Quis V. Ex honrar-me pedindo-me um artigo que servisse de prefácio à sua Etnografia da Beira. Na impossibilidade de, por falta de tempo, o escrever, envio-lhe esta simples carta.
Para que seria preciso um prefácio meu a uma obra que por si mesma se impõe ao bom acolhimento do público?
De facto, há nela óptimo conteúdo, apresentado com singeleza e naturalidade, que tornam agradável a leitura ainda aos não especialistas.
Quem, sendo Beirão, e conhecendo as lendas, as usanças e as superstições que V. Ex.ª enumera, não se recreará de repassar pela memória, assim elegantemente agrupadas, tradições com que foi embalado? E a quem, não o sendo, ou dedicando-se longe à Etnografia, não agradará ver aqui reunidos tantos elementos de estudo?
Coisas comuns a outras regiões
Muita cousa que V. Ex publica é naturalmente comum a outras regiões, por exemplo, a lenda do «monte do trigo», que se localiza também ao pé de Santarém, as «janeiras», a «serração da Velha», o «Natal», grande parte das superstições da secção que intitulou «Vária» – o que tudo se encontra «passim». Porém nas repetições há de ordinário variantes aproveitáveis.
A «maldição de Ródão», p. 17-21, é por exemplo, variante da «lenda de Gaia», tal como vem nos «Nobiliários», p. 180-181, século XIV.
Tanto quanto sei, ou me pareça, creio não estarem ainda arquivadas, ou estarem pouco divulgadas, notícias como as das danças, de que fala a pag. 85-96, e as de «deitar os moios ou o bom ano». Acho muito curioso o que diz do casamento, a pag. 101-103, de «chorar o Entrudo», a pag. 123, das «caqueiradas», a pag. 125, das «alviçaras», a pag. 129.
Os versos de pag. 93 têm a forma de «leixa-pren», como nos desafios. Acerca dos gambozinos pode ver uma curta nola de Sequeira Ferraz na «Revista Lusitana» III, 371. O oferecimento de «telhas roubadas» a santos, pag. 97, pertence a extensa série de superstições muito espalhadas por toda a parte: a elas já aludi algures, e outros paralelos poderia aqui juntar.
À data da instituição das Festas do Espírito Santo dediquei uma nota no «Mês de sonho», pag. 76. Acerca desta festa coligi há anos, também na Beira-Baixa, longa notícia e versos (Vide-Monte), que conservo inéditos. O doar o rei ao pastor, pag. 32, todas as terras que avistasse, tem outro paralelo em Portugal: e talvez se relacione com costumes de direito antigo.
A doença a que o povo dá o nome de «cobro», palavra que julgo sinónima de «cobrão», pag. 155, é a que os médicos chamam «zona».
Sugestões de enquadramento
Talvez as maldições de 143-145, que V. Exª inclue na secção das Superstições, coubessem melhor na das Lendas. Os cantos de pag. 138-139 devem pertencer a um antigo auto do Natal. Parece-me que na canção de pag. 91,
Senhora dos altos Céus,
Minha rosa encarnada,
Lá «ao baixo Alemtejo»
Chega a vossa nomeada,
onde «baixo» será com «B», a lição primitiva seria: «Lá baixo ao Alentejo», porque a expressão geográfica «Baixo-Alentejo» é bastante recente. (Na «Circumscripção dos districtos», 1868. pag. 126, lê-se «Alemtejo-Baixo»).
Receba V. Ex. os meus parabéns pelo trabalho com que concorreu para o progresso da nossa Etnografia; o meu desejo é que não só V. Ex. dê à estampa quanto antes o volume ou volumes que tem em mente ainda publicar, senão que não esmoreça na investigação, como a tantos outros tem acontecido.
Precisamos, cada vez mais, de estudiosos, como V. Ex.”, que saibam trabalhar com amor e consciência.
Campolide (Lisboa), 24-X-1926.
Introdução
À memória da minha mãe
Desde as mais remotas idades que o homem procura conhecer o que o cerca.
Deste sentimento de curiosidade nasceu o conhecimento simplista; do conhecimento simplista o conhecimento reflectido, a indagação das causas produtoras dos fenómenos em sua forma e finalidade.
Surgiram assim as ciências; primeiro as matemáticas, a história, a arqueologia, etc.; mais tarde a sociologia e a etnologia, seguindo-se desde logo, a Etnografia, para o estudo dos povos e das famílias, nos seus costumes, aptidões, génios e crenças.
E por isso, dada a sua importância, dado o seu indiscutível valor histórico, sentimental e prático, ela atingiu, em curto prazo, lugar de relevo.
É que, pela Etnografia, deviam descobrir-se indústrias e artes ignoradas, processos rotineiros de labor industrial, artístico e agrícola a que as estâncias oficiais têm podido pôr termo enviando às diversas regiões técnicos especializados a ensinarem processos novos de maior utilidade e rendimento
Pela Etnografia têm-se desencantado, em lugarejos ignorados e inacessíveis, velhas curandices ligadas a tantos outros processos anacrónicos de curar doenças, a que muitas vezes não falta o uso nocivo de mezinhas.
Em consequência dos estudos etnográficos têm podido, o legislador, o político e o sociólogo, aproveitar as virtudes que eles revelam, combater defeitos e, enfim, dirigir ou educar e não contrariar tendências naturais de reconhecida utilidade.
Na Etnografia, estudo dos costumes, encontra o juiz precioso elemento de colaboração para a aplicação das penas, e, quantas vezes, por disposição da própria lei, aplica o costume como se lei fosse!
Sugestão de leitura: Vale da matança – Rio Ponsúl (Lenda)
A Etnografia e os educadores
Na Etnografia encontram os educadores maravilhosos elementos para a educação das crianças, porque Ela lhes vai descobrindo e fornecendo velhos contos, velhos jogos, velhas lendas, quantas vezes repassadas de sentimento patriótico e de sãos princípios morais!
Mas, a civilização progride e ameaça tudo transformar. Não é preciso ser muito velho para notar grandes mudanças etnográficas. Diz, e muito bem, com a sua indiscutível autoridade de mestre, o sábio dr. Leite de Vasconcellos: «quem, vivendo hoje, nasceu nos meados do século XIX, lidou com patacos, cruzados e peças, viu a liteira, ouviu a sanfona – nada disso existe já hoje!».
Dez, vinte, cinquenta anos bastam para fazer esquecer ou transformar, adulterando-os, costumes velhos, usanças antigas.
Tem-se dito e repetido que é preciso e urgente recolher e guardar com cuidado e com carinho o que ainda nos resta, para que nem tudo se perca.
O presente volume de «Etnografia da Beira» não é mais que a minha quota parte de trabalho e de investigação referente ao distrito de Castelo Branco.
Possível é que às páginas que vão seguir-se outras se sucedam.
Oxalá os meus conterrâneos queiram continuar a dispensar-me o seu auxílio e o seu incitamento.
Fonte: Etnografia da Beira, de Jaime Lopes Dias (textos editados e adaptados)