A Amenta das Almas na Quaresma, em Loriga – Seia
A Amenta das almas em Loriga
Na etnografia de Loriga a existência da “Amenta das Almas” é uma tradição muito antiga, perdendo-se mesmo na noite dos tempos, e que se vem mantendo de geração em geração.
Esta prática religiosa tem lugar na noite de Sábado para Domingo, durante a Quaresma depois da 02h00 da manhã.
Antes dessa hora os “Penitentes” começam por se reunir no Adro da Igreja. Pouco depois e, enquanto alguns sobem para a torre da Igreja, outros espalham-se pela vila em pontos altos que lhes possibilite ver a torre, para travarem um “duelo” de cantos, onde evocam e louvam a paixão e morte de Jesus a salvação da Almas.
No silêncio da noite os cânticos ecoam pela Vila, acordando os crentes que começam a rezar.
Por meio de badaladas no sino da torre da Igreja anuncia-se a cerimónia.
Bendita e louvada seja,
A paixão do Redentor,
Para nos livrar das culpas
Morreu em nosso favor
Acorda, pecador, acorda,
Do sono em que está “dormente”,
Lembra-te das benditas almas,
Que estão no fogo ardente.
Estas quadras cantadas com música elegíaca, arrastada, dolorosa, ecoam pelas ruas, despertando os que já dormem, para orem pelas almas dos seus mortos queridos, cobrindo a vila de saudades.
– Vozes dos “Penitentes”: – Rezemos com devoção um Padre-nosso e Ave-maria.
– Respondem da torre da Igreja: – Seja pelo Divino amor de Deus, segue-se uma badalada.
Cântico
Cântico:
Repetidas são as dores,
De contínuo estão gemendo,
Assim são as almas juntas,
No Purgatório ardendo.
-Vozes dos “Penitentes” pela vila: – Rezemos mais um Padre-nosso e outra Ave-maria.
-Respondem os “Penitentes” da torre da Igreja: – Seja pelo Divino amor de Deus.
Clamorosa é a recitação do Padre-nosso e da Ave-maria e pungente é a resposta.
-Vozes dos “Penitentes” pela vila: – Dai-lhes o Senhor, o eterno descanso em paz.
-Respondem os “Penitentes” da torre da Igreja: – Entre o esplendor e luz perpétua, fazei que descansem em paz.
Vem a seguir a exortação aos crentes que dormem na inconsciência do momento da vida para que não esqueçam os que penam os seus pecados, lembrando-os do efémero que é a vida deste mundo.
Exortação aos crentes
Olha cristão que és terra
Olha que há-des morrer
Há-des dar contas a Deus
Do teu bom e mau viver
Uma alma só que tens
Se a perdes que será?
Se cais no mesmo abismo
Nunca mais a Deus verás
Não caias em tentação
Como calma na geada
Que andam a tentar
Os três inimigos da alma
Confessa os teus pecados,
Emenda a tua vida,
Que a morte te anda buscando,
De noite e mais de dia.
-Vozes dos “Penitentes” pela vila: – Rezemos-lhe com devoção uma Salvé-Rainha.
-Respondem da torre da Igreja: – Seja por seus infinitos louvores.
Quando a manhã começa, os “Penitentes” juntam-se novamente no adro da Igreja para todos juntos fazerem arruada, rezando ainda pelas almas dos seus mortos regressando finalmente ao seus lares, certos do haver cumprido este seu dever sagrado.
Observações
São muitas as pessoas que a Loriga se deslocam, para ouvir a Amenta das Almas, atraídas pela sua fama. Também a esta Vila se deslocou um dia, Michel Giacometti, grande pesquisador por todo o país, das tradições, dos cantares, dos usos e costumes, aos quais dedicou a sua vida em Portugal.
Esta secular tradição em Loriga, da Amenta das Almas, pode assim ficar registada na grandiosa obra desse histórico pesquisador de tradições portuguesas.
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Nota complementar: “Ementa” ou “Amenta” as Almas?
Ao longo dos tempos, tanto oralmente como na escrita tem tido as duas interpretações, uns considerando “Ementa” outras considerando “Amenta“. O certo, é que tanto uma como outra estão correctas, assim e tendo em conta aquele valor dos meus tempos de criança, neste artigo aqui descrito, irei manter “Ementa” por ser assim que ouvia as pessoas mais antigas, assim a expressarem-se.
Estudo da Tradição Secular da “Ementa das Almas” em Loriga
(Síntese da Memória Final da Licenciatura em Ensino – Educação Musical)
Joaquim Pinto Gonçalves
Quando começou?…
Estes Cânticos que fazem parte da “Ementa das Almas” (Encomendação das Almas, na sua designação mais corrente) existem em Loriga, pelo menos desde o Séc. VIII, de acordo com os testemunhos de alguns dos mais velhos participantes neste ritual.
Entoados nos primeiros tempos por vozes, juntou-se-lhes o instrumental, a partir do momento em que surgiu na vila uma banda de música – 1906. A “Ementa das Almas” é, no fundo, uma versão popular da “Liturgia dos Mortos” da Igreja Católica. O certo é que, embora com dificuldade, em Loriga, esta tradição vai-se mantendo.
Todos os anos, nas madrugadas de Sábado para Domingo, durante a Quaresma, o silêncio da noite é quebrado pelo ecoar dos Cânticos da “Amenta das Almas“, graças à boa vontade de uns tantos (não muitos) Loriguenses, que teimam em manter viva esta tradição.
Durante cerca de 2 horas, entre as quatro e as seis, desenrola-se este diálogo cantado, por vários homens que subindo aos pontos mais altos da vila, despertam o povo que dorme, para a recordação dos que já morreram. Aqui e ali, o diálogo é interrompido por uma badalada do sino da torre da Igreja, onde se encontra um dos participantes neste ritual, seguido de um período de silêncio – o necessário para que se reze um Pai-nosso… uma Ave-maria….
A “arruada”
No final deste diálogo, o grupo junta-se no adro da Igreja e inicia-se uma outra fase deste Rito, a “arruada“.
Esta é uma espécie de “Via Sacra” realizada pelo grupo de homens que canta a “ementa” e mais alguns que se lhes juntam, posteriormente, para aumentar o número de vozes e assim, melhor se fazerem ouvir pelos que não acordaram.
Na “arruada”, cantam-se os “Passos” dando conta das várias etapas do caminho de Cristo até ao Calvário. Trata-se, como já dissemos de uma espécie de “Via Sacra”, cantada pelo grupo, no final da “Ementa”.
Sexta-feira Santa, durante a arruada canta-se a “Mãe Dolorosa”, cântico que lembra as dores que Maria sentiu pela Paixão e Morte do Seu Filho.
Esta tradição mantém-se, independentemente das condições climatéricas. O período quaresmal, normalmente em Fevereiro e Março, é tempo de grandes nevões na região da Serra da Estrela. Mas, nem mesmo os nevões impedem que se cumpra a tradição. Embora Loriga tenha um razoável numero de população jovem, esta não se mostra muito interessada por estas tradições. Assim é muito natural que venha a perder-se a curto prazo.
Como situar a Tradição?
Desde muito cedo, ainda na infância, este ritual marcou-nos de uma forma que, na altura não conseguíamos explicar.
Com o decorrer dos anos, envolvemo-nos com aqueles que, madrugadas dentro cumpriam religiosamente, todos os anos, esta tradição.
Assim, cedo nos apercebemos de que as melodias da “Ementa das Almas” fugiam um pouco à sonoridade que estávamos habituados a ouvir. Pensávamos: – Isto deve estar desafinado!…
Mais tarde, com o evoluir dos nossos conhecimentos musicais, começámos, finalmente, a perceber que não se tratava de desafinação, mas de uma técnica de composição diferente. É aqui que surge a ideia de deslindar a origem desta tradição. Não de uma forma superficial, mas de algo mais profundo, indo mesmo às origens mais remotas.
Para tal, havia que investigar, não só em Loriga, mas noutras terras onde rituais deste género têm lugar. Assim, a simples curiosidade dá lugar a uma pesquisa sistemática de cariz mais científico.
Como ao longo dos anos fomos recolhendo informação sobre este e outros assuntos que se referem às tradições da região serrana, tradições culturais de uma forma geral, mas com especial incidência nas musicais, não é de estranhar que tenhamos optado por tratar este tema logo que surgiu uma oportunidade de fazer uma investigação na área da Etnomusicologia.
Assim, formulámos o seguinte problema nesta investigação:
– Será a “Ementa das Almas” de Loriga uma tradição secular? E quando se terá iniciado?
Para responder a esta pergunta e solucionar o problema que colocámos, há que atender a um sem número de situações que se prendem com a delimitação desta problemática.
Numa primeira análise, verificamos que o âmbito desta investigação atravessa vários domínios das Ciências Sociais.
Uma perspectiva histórica e outra antropológica
Desde logo devemos contextualizar este problema numa perspectiva histórica. Há que curar de saber se Loriga ou outro aglomerado populacional poderiam suportar uma tradição deste tipo ao longo de um determinado período histórico. Isto é, para situarmos a origem deste ritual num dado momento histórico, há que saber se existiam os sujeitos e se os mesmos poderiam ser localizados no espaço ou território a que hoje chamamos Loriga.
Por outro lado, cruzámo-nos com a perspectiva antropológica. De que forma ritualizava o homem o culto dos mortos? Quando e em que condições o começou a fazer? Porquê ritualizar este culto? Que crenças lhe estão subjacentes? Qual o papel da religião nesta ritualização? Como evoluiu a crença na vida para além da morte?
A estas e outras perguntas do mesmo tipo tentámos responder ao longo da nossa investigação. Até porque sem estas respostas não conseguiríamos contextualizar, do ponto de vista antropológico, o problema que formulámos.
Perspectiva etnomusical
Por fim surge-nos a perspectiva musical ou para sermos mais correctos a perspectiva etnomusical. E aqui tratámos de procurar pontos de contacto, semelhanças ou diferenças entre técnicas de composição actuais e outras mais ancestrais.
Procurámos fazer a análise de partituras deste e de outros rituais semelhantes e situar as mesmas no tempo e no espaço.
Tínhamos consciência de que seria algo difícil provar com toda a certeza que a tradição da “Ementa das Almas” de Loriga tem origem secular, provavelmente no tempo da Romanização da Península Ibérica.
No entanto, através da investigação e de comparações com melodias e tradições divulgadas por outras fontes, procurámos atingir esse nosso objectivo.
Várias hipóteses
Para atingi-lo, colocámos em cima da mesa várias hipóteses:
Sendo o nosso objectivo situar esta tradição o mais longe possível no tempo, a primeira das hipóteses que colocámos situa-se no período anterior à formação da nacionalidade, na Lusitânia, pois as fontes que consultámos dão-nos conta da existência de uma comunidade no local.
É uma hipótese remota mas nem por isso totalmente descabida, uma vez que, existem vestígios de rituais fúnebres, que remontam a esse período.
Outra das hipóteses, quiçá, a mais credível, situa-se na época da reforma do canto litúrgico – Séc IX.
Dizemos que será a mais credível atendendo à forma de construção de algumas das melodias que, em nosso entender, mantém uma certa semelhança com a construção monofónica e execução responsorial típica do “cantochão”.
Uma terceira hipótese é aquela que situa o início desta tradição nos Séc XVII ou XVIII.
No entanto, esta, à partida, está provada pelos testemunhos recolhidos em Loriga. O “Ti Zé Garcia” homem para 70 e tantos anos, já falecido, que foi a alma deste ritual há duas décadas, dava-nos conta de que foi iniciado nesta tradição pelo seu pai, que por sua vez havia sido iniciado pelo pai dele. Todos os outros participantes neste ritual afirmavam ter sido iniciados pelos pais e estes pelos avós.
No séc. IX
Aprofundámos, no entanto, a hipótese que considerámos mais credível, atendendo às características musicais dos cânticos utilizados ou seja, o Séc. IX.
Dos dois cânticos que apresentamos, em ambos os casos a construção afigura-se-nos como modal. Isto é, sendo tonal a música que estamos habituados a ouvir (a música tonal só aparece nos Séc. XVII /XVIII), esta soa-nos aos ouvidos como algo estranho, como se não fizesse parte (como não faz) do nosso quotidiano.
É que a música que estamos habituados a ouvir é construída a partir de escalas – tonalidades – porque assentam numa nota que é a tónica. Eis a razão porque se chama tonal.
Música na Idade Média
Na Idade Média, a musica era modal, porque a sua construção assentava em modos. Esses modos eram grupos de sons sobre os quais eram construídas as melodias da época.
Existiam 4 modos chamados Autênticos ou Gregos e 4 modos derivados destes, chamados Plagais ou Eclesiásticos.
A construção melódica dos cânticos que analisámos é tipicamente modal, logo, com origem na época da reforma do cântico litúrgico (Séc. IX). Os Martírios estão construídos no modo Autêntico de Mi, também conhecido por Frígio. A Melodia da “Ementa das Almas” está construída no modo autêntico de Ré, também conhecido por Dórico.
A sua forma responsorial é típica do Cantochão, nome que era dado ao canto Gregoriano dessa época. Os Melismas (uma só sílaba é entoada ou prolongada pela melodia) também típicos desta época estão presentes em ambos os cânticos com alguma abundância.
Pelas razões apontadas e outras de cariz mais científico, que aqui nos abstemos de abordar, poderemos, efectivamente afirmar que esta é uma tradição que remonta aos primórdios do Cristianismo na Península Ibérica.
“Ementar” ou “Amentar” as Almas?
Outra das pistas que seguimos leva-nos à origem do nome deste ritual.
Em Loriga, desde crianças, habituámo-nos a ouvir falar da “Ementa das Almas“. Todos aqueles que cumpriam este ritual a ele se referiam desta forma. No entanto, a partir de uma certa altura, começou a constar em Loriga que o termo correcto seria “Amenta” e não “Ementa“.
O curioso desta questão é que uns e outros podem estar certos porque ambos os termos existem e com significados similares.
Segundo Sousa Viterbo (*), “amentar“, quer dizer: “Quando os pastores da Igreja rezam pelos defuntos“.
No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora a palavra “amentar” surge com o significado de “Encomendar as Almas“. No entanto, não quisemos ficar por aqui e fomos procurar a origem das palavras e chegámos a interessantes conclusões.
Segundo o Dicionário Etimológico a palavra “amentar“, do Latim amentare, surge pela primeira vez na língua Portuguesa no séc. XVIII e com o significado de “prender com correias, atar”.
A mesma fonte refere a palavra “amentar“, como tendo origem em mente (lat. Mens mentis) com o significado de intelecto, alma espírito, do Latim Amens amentis com o sentido de que perdeu a mente.
Origem etimológica do termo “ementar”
Mas o mais curioso desta nossa procura é que do ponto de vista da origem etimológica do termo, fomos encontrar o termo “ementar”, também relacionado com mente, como tendo surgido na Língua Portuguesa pela primeira vez no séc. XIII com o significado de recordar.
Perante estes factos poderemos afirmar que termo “Ementar” é o que vem de encontro à nossa tese de situar o início deste ritual na Idade Média. Por outro lado, os participantes que há duas décadas atrás diziam que estavam a “Ementar as Almas”, estavam, do ponto de vista do português, cobertos de razão.
Afinal o que é este ritual senão o recordar as almas do purgatório?
Assim, no caso de Loriga, é mais correcto dizer a “Ementa das Almas” e não “Amenta das Almas“.
(*) In, “Elucidário”, Sousa Viterbo. Cit. p. Armando Leça, Música Popular Portuguesa, p. 10.
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Nota: Magnifico trabalho de pesquisa e de estudo sobre a Ementa da Almas de Loriga, levado a efeito por este bem conhecido loriguense Joaquim Pinto Gonçalves, que desta forma veio enriquecer uma das mais importantes tradições de Loriga. Fonte
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