Usos, costumes e tradições

Deitar dos moios ou o bom ano em Idanha-a-Nova

Deitar dos moios ou o bom ano

Houve por muitos anos em Idanha-Nova, em tempos que não vão distantes, um numeroso grupo de lavradores que, não possuindo bens próprios, moviam a sua lavoura em terras anualmente arrendadas para sementeira.

Os seus rendimentos, a sua melhor, quase única fonte de receita – aparte algum lucro da criação das juntas com que lavravam – residia indiscutivelmente na seara. Por isso nela punham a sua melhor esperança.

Crentes com sinceridade, educados desde o nascimento no respeito e temor de Deus, convictos de que «mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga» viviam e morriam rezando todos os dias: «o pão nosso de cada dia nos dai hoje…»

Mas, se assim continuadamente imploravam a proteção de Deus para que lhes desse o pão de todos os dias, em 31 de dezembro, data com que o calendário marca o fim dos anos e dos séculos, alguma coisa mais haviam que pedir-lhe: o desdobramento da seara em messes infindas, visto que ela consubstanciava o labor incessante de todo um ano.

E por isso, na prática de antiga tradição, a padieira da cozinha era nesse dia limpa e esfolinhada com o maior cuidado, para o deitar dos moios ou o bom ano.

Deus nos dê…

Para junto do lar vinha um prato da melhor farinha; e, ao cair da primeira badalada da meia noite, antes que o relógio deixasse de se ouvir, a esposa, apertando entre os dedos polegar e indicador um pequeno trato do alvinitente pó, ia atirando à padieira e contando e dizendo: Deus nos dê: um, dois, três (etc.) moios, o dobro e mais outros tantos.

E a padieira, enegrecida pelo fumo de todo um ano, era agora semeada de pontos brancos, tantos quantos os moios deitados.

E a padieira, queimada pelo lume ininterrupto de gerações, lá ficava a atestar a velha tradição de, na transição do velho para o novo ano, os lavradores de Idanha-a-Nova pedirem proteção e amparo a Deus, na legítima aspiração de uma vida mais desafogada e mais livre.

A prática caiu em desuso, mas tradição é ainda entre o povo que anos houve em que as terras deram o dobro e mais de outro tanto do que o que os seus cultivadores a Deus haviam pedido.

In “Etnografia da Beira”, Jaime Lopes Dias (texto editado)