Chanfana são nacos de carne de cabra velha

Chanfana

«(…) comíamos carne de cabra de manhã, ao meio-dia, à noite»

Aquilino Ribeiro

Em voga desde pelo menos o primeiro quartel do século XVIII até ao terceiro do XIX, a chanfana era então um prato tabernário que consistia basicamente num guisado de bofe e outras miudezas de vaca.

Nicolau Tolentino (1714-1811), confessadamente criado com ela, assim a descreve, fingindo desenhá-la, num soneto dirigido a um poderoso:

«Comprada em ascoroso matadouro
Sanguinosa fressura, quente e inteira,
E cortada por gorda taberneira,
cujo cachaço adorna um cordão d’ouro: 

Cabeças de alhos, com vinagre e louro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira
Co’os indigestos fígados do touro. 

Suavíssimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o demo o atura:

Isto é chanfana; e sei quanto ele custa;
Deu-me o berço, dar-me-ia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta.»

Outro poeta (obscuro) coevo, Luís Joaquim da Frota, critica este retrato, pois «sem pimentão, toucinho e sal/ Muito mal o guisado temperou.»

Não se esqueça o jovial e satírico António Lobo de Carvalho (1730?-1787). Conhecido por «O Lobo da Madragoa», que foi quem mais versos dedicou à chanfana, corroborando a composição do petisco.

A origem da chanfana

Vocábulo derivado do espanhol chanfaina (que igualmente significa guisado de bofes ou fressura), esta chanfana terá sido introduzida e divulgada em Lisboa pelos taberneiros galegos e dirigida sobretudo aos seus patrícios.

Pelo menos é o que afirma o anónimo articulista do Arquivo Pitoresco (vol.III, 1860) – onde também figura uma curiosa ilustração do chanfaneiro -, acrescentando, depois de especificar que «da frescura ao de ventre do boi saiu este guisado, subdividido em dobrada, isca de fígado e não sabemos que mais», que, além dos galegos, muitos nacionais eram «fregueses certos, e de casaca».

Perdido, sem grande pesar, tal pitéu, o significado de chanfana é hoje totalmente diferente. Hoje, é uma maneira de dizer, dado que há quem atribua a esta outra acepção uma tradição do século e meio ou mais.

Certo é que, desde há muito (embora só tenha começado a aparecer nos cardápios dos restaurantes a partir da segunda metade do século XX), a chanfana é um prato característico de parte do distrito de Aveiro e do de Coimbra, da Bairrada até Poiares, Lousã e Miranda do Corvo.

Chanfana

Carne de cabra velha com batata cozida

Consta essencialmente de nacos de carne de cabra velha, devidamente condimentados, temperados e totalmente cobertos com o vinho tinto, que, em caçoila de barro preto tapada, vão assar em forno de lenha por horas esquecidas.

Dizem que ainda é melhor comida no dia seguinte ao da feitura, reaquecida.

O acompanhamento canónico é a boa da batata cozida (com pele), abeberada naquele apuradíssimo molho.

De festiva que é, também «carne de casamento» lhe chamam, ou, na zona bairradina, «lampantana».

Louvores sejam dados à cabra, que, depois de uma vida a desentranhar-se em leite e cabritos, cumpre a sua missão até ao fim, entregando-se derradeiramente, por via de engenhosa culinária, num manjar de truz.

Guia da Semana – EXPRESSO – Edição Norte | Imagem de destaque