Aspectos populares de outros tempos
Aspectos populares de outros tempos
Há por esse país fora, um sem número de velhas usanças e amoráveis costumes, quási todos cercados dum tão pitoresco e bizarro sabor de ingenuidade e ternura, que os tornam extremamente interessantes e deliciosamente agradáveis.
Alguns deles tendem a extinguir-se, desaparecendo sob a ação reformadora dos tempos modernos, pelo cepticismo das classes cultas, pelo espirito de descrença que invade as multidões e pelo indiferentismo condenável que avassala todos os indivíduos.
A tradição apaga-se por completo, subvertida pela decadência atrofiadora da raça, pela ausência de sentimento artístico e emoção estética de quási todos nós.
A falta de gosto e amor pelo belo é, talvez, a característica mais notável das novas camadas sociais.
Triste é dizê-lo.
No entanto, a sinceridade do afecto popular pelo culto do passado, era ainda não há muito tempo, extremamente arraigado entre nós, razão porque a voz enternecedora da saudade evoca sempre em mim reminiscências agradáveis desse passado cheio de poesia e encanto.
Rememorá-lo com carinhoso afeto, registando-o para sempre, é, a meu ver, uma missão imperiosa e fecunda da imprensa, animando o texto com a documentação gráfica, que o torna mais atraente e elucidativo.
Estudos monográficos
Entre nós, os estudos monográficos das localidades são em pequeno número, o que é pena, porque eles nos dariam subsídios ignorados muito valiosos acerca de tanta coisa original e bela que há na vida dos povos das diferentes regiões do país.
Já em tempos, Oliveira Martins escreveu que «um corpo de monografias destas, formariam um tesouro de inestimável valor para o estudioso, ao mesmo tempo que serviria para arraigar nas localidades o amor da terra, fixar e esclarecer as tradições».
Infelizmente estas judiciosas palavras não encontraram, nem terão, eco no espírito daqueles que, para a sua realização, poderiam contribuir eficazmente.
A falta de trabalhos deste género, elaborados parcialmente nas diferentes regiões teria, quiçá, estorvado a factura de uma obra de largo folego sobre a etnografia do país, que seria rica de informações inéditas muito curiosas.
Festa da Epifania em Ílhavo
A registar com louvor há o recente trabalho de Cândido Landolt, que no seu «Folk-Lore Varzino» nos descreve, com mão de mestre, variados e flagrantes aspetos dessa linda terra que é a Póvoa do Varzim.
Ora tudo isto vem a propósito, ou despropósito, do modo como ainda há poucos anos aqui em Ílhavo se comemorava a festa da Epifania, muito especialmente o dia de «Reis», exibindo-se nas ruas um pitoresco e meio pagão cortejo, que punha a vila em alvoroço e festa.
Muitas semanas antes daquele assinalado dia, já na terra e arredores se procedia à confecção dos trajos e procura das peças de indumentária e ourivesaria antiquadas que as personagens deveriam ostentar no imponente cortejo, porque o era, pela qualidade e quantidade de figurantes que nele se incorporavam.
Os trajos e adornos exibidos não eram uniformes, nem obedeciam aos rigores de qualquer época ou estilo, bem ao contrário manifestavam uma absoluta disparidade entre si, sendo, no entanto, sempre duma bizarra e policrómica estravagância, buscando cada um dos figurantes tornar-se notado, muito especialmente as raparigas, pela garridice e riqueza dos seus fatos.
Eram elas, quási sempre, as mais lindas e tentadoras moças deste Ílhavo amado – que as possui gentis e ladinas como em parte alguma – rivalizando, a capricho, na maneira distinta e galante de se apresentarem.
Adorar o Menino Jesus
E a verdade é que, desta emulação, filha dum egoísmo e vaidade muito acentuados resultava a apresentação dum grupo deliciosamente encantador de «pastoras» que, sobraçando os seus cestos e alcofas ajoujadas de prendas para ofertar ao «Menino Jesus», esmaltavam e davam realce ao cortejo, animando-o com a toada dolente e sonhadora das loas e hinos, tão impregnados duma deliciosa suavidade, que iam entoando, com viva emoção, ao som das frautas dos pastores e da harpa do rei David:
Lá vai o astro divino
Que sempre nos tem guiado;
Sigamos o seu destino,
Que o Rei dos Reis é chegado.
Cumpriram-se as profecias,
Já não há que duvidar;
Três Reis Magos, do Oriente,
Vieram p’ra o adorar!
Em estridente coro uníssono a grande massa dos figurantes respondia então com o ritornelo:
Avante pastores,
Sigamos com fé,
A adorar o menino
Que nosso Rei é!
E por entre os rumores alacres de uma multidão despreocupada e feliz, que alvoroçadamente se acotovela e comprime, o cortejo desfilava a custo pelas ruas da vila, que nesse dia tinham um ar vivificante de festa e alegria, dirigindo-se ao «Presépio», guiado pela estrela refulgente que abre o séquito e sob a égide dos três «Reis Magos», que impavidamente o fechavam, imprimindo-lhe respeito e carácter, com os seus fantásticos turbantes de ouropéis e os seus longos mantos constelados de lantejoulas…
Como eu vivo pela imaginação saudosa esses aspetos adoráveis dum passado cheio de enlevo e poesia que – ai de mim! – não voltará já mais!…
Diniz Gomes


Fonte: “Ilustração Portuguesa”, nº 515 – 1916