As segadas – Atividades agrícolas em Trás-os-Montes
As segadas
Rezam as velhas crónicas de tempos idos… Os povos primitivos viviam da “recoleição” de frutos. Eram recolectores. E afinal de contas também nós hoje colhemos e armazenamos os alimentos, embora de maneira diferente.
Festa da recoleição, lê-se em velhas crónicas da sua existência, em tempos muito antigos. As suas celebrações tinham plena razão de ser, pela estabilidade que geravam para ao longo do ano se poder contar com a ausência de penúria.
Quando nos meus tempos de criança observava a peregrinação diária dos pobres das portas, ia tomando conta de alguns desabafos que se ouvia dizer, com a força de orações como esta: que nunca nos falte o pão e o caldo.
As segadas eram uma festa
As colheitas, como as segadas, na Castanheira, eram na verdade uma festa.
Todo o santo dia se cantavam as “Cantigas da Segada”, escolhidas a dedo, pela norma do tradicional, desde o amanhecer até à noitinha. O dia era longo, dos maiores do ano, mas com inúmeras dimensões.
O amo da segada ia fazendo os seus cálculos, preocupado com o decorrer das horas e o número de terras para segar, porque não lhe agradava que o trabalho ficasse de sobra para um segundo dia.
E a dona de casa tinha de olhar para as divisões da sua tarefa, consideradas como jornada longa e preocupante, porque os segadores eram respeitados como hóspedes a muito honrar naquela festa de ano, em que é bem patente a alegria de meter a fouce na seara, apertar carinhosamente os “mangados” de espigas e abraçá-los com dedicado amor ao fazer os molhos e apertá-los com a delicada “granheira”.
Um ano à espera entre inúmeros e contingentes perigos, levava ao desabafo, ao desprender dos sentimentos de funda gratidão para com o Senhor Deus do céu e da terra que tudo nos dá.
Começava-se com o “desjejum”
E para bem tratar os segadores, havia o “desjejum”, logo bem cedo, ao princípio do trabalho; mas a primeira grande refeição era o almoço, aí pelas oito horas da manhã, depois de um trabalho de cerca de três horas bem rendosas.
O esforço da sega era quase como o de quem apaga o fogo de um terrível incêndio; por isso entre as dez e as onze horas não faltava quem apresentasse uma merenda especial.
Pela uma hora da tarde vinham à “faceira” os grandes cestos transportados à cabeça da “senhora cozinheira” e suas ajudantas. Andava, como soía dizer-se, o arroz pelas poulas!
Eram pelo menos duas iguarias que se apresentavam com bons pedaços de toucinho e fumeiro e o cordeirinho assado no espeto, ao calor do lume da lareira, bem temperado, a dizer das virtudes do dedo especial de quem naquele dia tocava viola, e bem tocada!
O vinho ia em pipos de três canadas, a dita remeia ou mesmo num pipo de cântaro, que é, como quem diz, meio almude ou doze litros.
E como os dias de Junho – Julho são como anos, não faltava a merenda caprichada pela parte da dona de casa, para sustentar o dispêndio de energias de quem aguentava toda a sesta, sem descanso, alagado em suor.
Em plena eira
Deitavam no chão, como em cama certinha e muito bem feita, aquela sequência de “mangados” que os atadores iriam depois, muito diligentemente pondo em molhos gémeos e bem seguros.
Rematavam-nos segundo a regra, comprimidos sob o joelho e bem espalmados, e com o dar das chaves para segurar a oculta ponta do “bancelho”, que é a dicção usual de vincelho, ou a dita granheira, feita com cerca de doze caules, tomados pelas espigas e rifados ou ripados do último molho, para apertar o molho seguinte.
Como entre o meio da tarde e a hora da ceia havia um intervalo de tempo bastante prolongado, o povo falava no costume antigo de se dar ainda o merendinho, isto é, uma segunda merenda mais aligeirada.
É que os segadores, numa azáfama daquelas, tudo mereciam, e nada se devia poupar de quanto eles precisavam para tal “marnega”, isto é, para um trabalho tão esforçado.
Vinho não faltava
O pipo de canada andava sempre na mão do amo, para no começo de cada novo sulco matar a sede a todos os que precisassem; e para que as coisas corressem sempre pelo melhor, também a dona de casa tinha o cuidado de fazer abundantes refrescos e mandá-los aos segadores. Seria esta uma devoção especial, à revelia de Santo Baco…
É de referir que o sistema usado na segada, para se compreender melhor o esforço de todos e de cada um:
Cada segador levava três sulcos de pão. Às mulheres pertencia-lhes levar dois.
Para não baterem com a fouce no vizinho da esquerda, a segada era orientada estrategicamente, pondo à esquerda do grupo de segadores os mais diligentes, para irem depois todos um pouquinho recuados em relação uns aos outros. Os mais valentes e desenvoltos davam ao grupo a velocidade do andamento, e todos deviam tentar acompanhá-los, naquela como que fila indiana.
Regresso a casa
A Camarada significava, na região norte de Portugal, o conjunto de todos os intervenientes na segada: homens, mulheres e crianças. Normalmente era um grupo numeroso, porque o trabalho da ceifa, violento e demorado, fazia-se por entreajuda de parentes, amigos e mesmo benfeitores que ajudavam desinteressadamente.
Ao fim da segada, que poderia demorar mais do que um dia, havia uma satisfação grande por terminar aquele trabalho tão penoso e feito ao longo de todas as horas do dia e debaixo de um sol abrasador.
Comia-se bem e bebia-se melhor, para apagar a sede e evitar a desidratação, pelo muito que se transpirava.
Era uma festa. Por isso, cantava-se.
Em chegando à aldeia
Primeira quadra:
À entrada desta rua,
Logo me cheiraram rosas;
Logo meu coração disse:
Aqui há moças formosas.
Outras quadras seriam intercaladas ou introduzidas pela aldeia fora.
Eu hei-de ser dos primeiros
A subir a escaleira,
Para darmos “uma viva”
À senhora cozinheira. (Roriz)
“Uma viva”: curiosa mudança de género.
A senhora cozinheira,
Ela cozinhava bem;
Punha a candeia na escada
Para falar ao seu bem.
No dia da segada, o bem da senhora cozinheira não podia deixar de ser todo o conjunto de segadores.
Ó senhora cozinheira,
Ponha a candeia na escada;
Venha ver os segadores
Quem vem da sua segada.
Agradecimento
Ao regressar a casa, havia quem não se descuidasse de fazer um grande ramo com as melhores espigas de centeio e umas florinhas silvestres a embelezá-lo. Era ele a oferta para a dona da casa, a senhora cozinheira, aquela que se esmerava por apresentar as melhores iguarias. E chegava a haver seis ou sete refeições durante o dia, desde o amanhecer até á noite.
“Andava o arroz pelas poulas”, dizia o povo. E explicava-se: bom momento na vida do lavrador; a fartura e a fidalguia em tempos de pobreza.
É claro: a hora da colheita é de alegria; e a segada era na realidade uma verdadeira festa.
Ao entrar no povo tinha de se dar conta, o mesmo é dizer: dar a conhecer ao público que se fez a segada de fulano.
Fonte: “Velhas Canções Trasmontanas”, de António da Eira, 2005, edição do autor (texto editado e adaptado)