As «Reisadas» nas velhas Terras da Maia

As «Reisadas»

Notícia e enredo dum auto que sobre ao tablado há século e meio

Espectáculo típico e bem característico das velhas Terras da Maia que se distendem, na sua configuração geográfica e na mancha dos seus usos e costumes, desde o arrabalde portucalense até à ribeira do Ave, limitadas a nascente pelo Couto de Santo Tirso de Riba d’Ave e terra de Refojos – é aquele que oferece, ainda em nosso tempo, a representação do auto das «Reisadas», que os «reiseiros» maiatos sabem interpretar a seu modo.

Habituado a viver, com os seus conterrâneos, as cenas dramáticas e os enxertos de acentuada feição cómica, a roçar pela farsa, que compõem esse auto – que vê subir ao tablado desde os seus tempos de menino e moço – quis o autor, certo dia, saber da sua origem, para o que se deu à recolha dos subsídios arquivados em velhos e sebentos cartapácios, a que na região se dá o nome pitoresco de «cascos».

Foi aí que colheu notícias que o habilitaram a coligir algumas notas vindas já a público e depois aproveitadas, embora sem citação de origem, por outros autores, entre eles o redactor da nota inserta na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, sob a palavra Reiseiro.

Averiguou o autor que o primeiro texto das «Reisadas» foi composto, em 1816, pelo Padre Manuel da Silva Lamas, Abade de Nogueira da Maia.

Deu-lhe então o título de «O Nascimento do Menino Deus», chamando-lhe ainda «drama sacro em quatro actos», com «enredo místico».

Mais: arrimado ao propósito de bem definir a sua intenção, esclareceu também o referido autor, no rosto do seu manuscrito, que o auto se apresentava «mesclado com algumas passagens jocosas para divertimento dos espectadores».

Veio o auto a ser acrescentado e reformado pelo Padre João Vieira Neves Castro da Cruz, que em 1867 o fez representar, assim refundido, na freguesia de Milheirós da Maia, por ele paroquiada.

A nova versão, salvo ligeiras variantes que não bolem com a estrutura geral, é aquela que ainda em nossos dias é interpretada pelos «reiseiros» de Alvarelhos, de S. Cristóvão do Muro, de Avioso ou de Bougado – esses os derradeiros abencerragens da representação deste «drama sacro».

Ao compor o seu auto, o Padre Manuel da Silva Lamas fê-lo de acordo com o gosto do povo, a ponto de se servir da redondilha.

As modificações, e também estas sempre atinentes a suscitar o interesse do espectador, que vieram a ser introduzidas no texto original – como aconteceu, por exemplo, da parte dum certo Miguel da Costa, natural de S. Mamede do Coronado, que deu um arranjo ao «casco» em 1845 – não tocaram, regra geral, em mais do que naquelas cenas destinadas a despertar o gáudio.

E só assim se explica um enxerto do gosto e intenção daquele que é assinalado pela intervenção dos «muchachos», dois brancos e outro preto, que se dizem criados dos Reis Magos, quando não dum Esopo e da Velha de Esopo – figuras de entremez ali verdadeiramente deslocadas.

O autor do primitivo texto das «Reisadas» juntou a este, no final, uma explicação do seu drama, vertida em prosa.

Ai, diz assás o suficiente da sua intenção, pormenorizando o recurso aos textos bíblicos de que lançou mão para o arquitectar de todas as cenas.

Explica, então, o que julgou merecedor de ser levado para o tablado da representação, ou seja o nascimento do Messias – causa imediata do ódio impotente de Herodes – a adoração dos Reis Magos e dos Pastores, e a fuga de Nossa Senhora e S. José, com o Menino, para o Egipto.

Descrevendo o auto no pormenor das suas cenas, o autor deter-se-á na enumeração de todas aquelas que se mostram de gosto clássico – algumas a denotarem sobrevivência do bilinguismo seiscentista, como já acentuou noutro lugar e apresentará, em gravações, muitas outras, bem como os cânticos que enriquecem o texto.

Para estas gravações, recorreu o autor à interpretação que é dada ao auto pelos «Reiseiros» de Bougado.

Pelo Dr. António Cruz, Diretor da Biblioteca Pública Municipal do Porto

Fonte: “Guia oficial do I Congresso de Etnografia e Folclore” – Braga e Viana do Castelo – 22 a 25 de Junho de 1956 (texto editado e adaptado) | Imagem: «Reiseiros« in
“Ermesinde: Memórias da Nossa Gente”