A música tradicional portuguesa – pioneiros das recolhas (II)
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Francisco Lacerda
Referimos já, também, a atenção que a música tradicional mereceu a um dos grandes músicos da história cultural portuguesa: Francisco de Lacerda (1869-1934).
Director de orquestra e compositor, desde cedo a etnografia musical lhe interessa especialmente.
Em Paris, a partir de 1895, segue neste domínio a lição de Charles Bordes e, com o apoio de Bourgoult-Ducoudray, concebe, entre outros projectos que ao longo da vida não chegará a levar a cabo, uma Associação Internacional de Folcloristas.
Alguns anos depois encontra, junto de seu amigo Claude Debussy, estímulo para a publicação duma obra (não sabemos se apenas com recolhas que efectuara em 1899-1900 nos Açores, onde nascera, se também com espécimes de Portugal continental) que intitularia Cantos de Um Pequeno Povo Esquecido.
Residindo de novo nos Açores entre 1913 e 1921, não chega a atender ao repto de outro conterrâneo ilustre, Luís Ribeiro – a quem a canção popular açoriana mereceu alguns textos breves – para lançar mãos à recolha sistemática e ao estudo da música tradicional do arquipélago.
Só nos últimos anos de vida, depois de algum trabalho de campo na Madeira, no Minho, Estremadura e Algarve, reúne material para o seu Cancioneiro Musical Português, que na sua maior parte deixou inédito.
Francisco de Lacerda realiza o perfil, dominante, ou senão frequente, no seu tempo, do criador de vasta formação musical que se deixa fascinar pelos valores da música tradicional, particularmente a do povo a que pertence, fascínio que marca a própria obra do compositor, num último período de vida sobretudo.
Continuação em outros criadores
Veremos que na história da música portuguesa do século XX esse perfil se prolonga numa geração posterior de criadores, integrando nomes como o de Fernando Lopes Graça, ou mesmo os de Cláudio Carneiro, Armando José Fernandes e outros, que, levados pela preocupação de à sua obra conferirem cunho nacional, se interessam pela música tradicional portuguesa, em que efectivamente se inspiram.
Temos notícia de contactos pessoais entre Francisco de Lacerda e a figura a que de seguida faremos referência, contactos motivados por comum interesse no folclore musical português.
Rodney Alexander Gallop
O diplomata inglês Rodney Alexander Gallop vem, aliás, integrar a galeria de estrangeiros que, desde Platão de Vaksel, se ocuparam da nossa música tradicional.
Gallop permaneceu em Portugal cerca de três anos, procedendo a recolhas no início da década de 30.
Nelas tem origem o ensaio Portugal – A book of folkways (Universidade de Cambridge, 1936) e a colectânea Cantares do Povo Português (Instituto de Alta Cultura, Lisboa, 1937), de cuja tradução se encarregara António Emílio de Campos.
A obra de Gallop – que deu a conhecer os Pauliteiros de Miranda ao Albert Hall e, também em Londres, pronunciou uma conferência intitulada «The development of folk-song in Portugal and the Basque Country» – permanece um contributo estimável para o conhecimento do nosso património musical.
Pela sua qualidade de estrangeiro culto, pelo conhecimento que detinha da música tradicional de outras regiões europeias, dispunha o diplomata duma perspectiva particularmente segura, o que justifica o apreço que granjeou junto de um Francisco de Lacerda ou os termos em que se lhe refere ainda Fernando Lopes Graça.
Kurt Schindler
Outro estrangeiro que pela mesma altura levou a cabo trabalho de campo em Portugal é Kurt Schindler.
Professor na Universidade de Colúmbia (Nova Iorque), percorreu Trás-os-Montes em 1932, crê-se que orientado por Raul Teixeira, ao tempo director da Biblioteca do Museu Regional de Bragança (Abade de Baçal).
Ali registou, entre outros espécimes, llaços dos Pauliteiros em Sércio e Encomendações das Almas em Tuiselo, mas o seu livro, Folk music and poetry from Spain and Portugal (1941), respeitando minoritariamente à música tradicional portuguesa, não foi vertido e publicado em português.
Serrano Baptista
Alguns dos llaços dos Pauliteiros transmontanos primeiro fixados por Kurt Schindler foram também recolhidos em 1938 por Serrano Baptista, que contingências profissionais haviam feito chefe da secretaria da comarca de Miranda do Douro.
Além de um primeiro capítulo que reúne trechos dos Pauliteiros, o Cancioneiro Tradicional Mirandês, de Serrano Baptista, inclui outros intitulados «Romanceiro», «Religiosas», «Coreográficas» e «Vária».
Deixado inédito pelo autor, só recentemente veio a público, ao contrário do que acontecera com um anterior Romanceiro e Cancioneiro Popular da Minha Terra, editado em 1921 e incidindo sobre a Beira Baixa.
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Fonte: “O essencial sobre a Música Tradicional Portuguesa”, José Bettencourt da Câmara (texto editado e adaptado) | Imagem (meramente ilustrativa): “Carro da Associação de Agricultura Famalicense” durante a Parada Agrícola em Vila Nova de Famalicão (1912) – “Occidente”, nº1209 – 30 de Julho de 1912