Música

A música tradicional portuguesa – pioneiros das recolhas (I)

Os pioneiros nas recolhas das canções tradicionais portuguesas

Gonçalo Sampaio

aludiu, a propósito dos corais polifónicos das maçadeiras do Minho, aos entraves que foi necessário vencer para ultrapassar o prejuízo de que só arte culta vale enquanto tal, sendo por conseguinte a arte popular, marcada por outros critérios, mais ou menos desprovida de valor estético:

«O cultismo musical apoda de ‘música bárbara’ as formas de composição que, como esta, apresentam as vozes em movimento paralelo, com sucessão de quintas, mas as mulheres do Minho executam-nas com tal sucesso que só os obcecados pelos preconceitos escolásticos – já hoje incompreensíveis – é que poderão deixar de lhes reconhecer uma real beleza

Sem detrimento de relatos, impressões, que em publicações mais antigas possamos recortar, apenas na segunda metade do século XIX parecem começar a surgir os primeiros frutos, a nível editorial, do interesse, que se vinha afirmando, pela música tradicional portuguesa.

O livro Músicas e Cantigas Populares Coligidas da Tradição, de Adelino das Neves e Melo, vem a lume em 1872; é possível, contudo, que uma busca aturada revele alguma obra anterior relativa ao assunto.

As publicações periódicas regionais das últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX guardam textos sobre música tradicional portuguesa que, embora de cunho mais ou menos literário, será útil o investigador compulsar.

Lembramos, a título de exemplo, os vários artigos sobre história da música em Portugal e sobre música tradicional madeirense da autoria do aristocrata russo Platão de Vaksel, por razões valetudinárias aportado à ilha da Madeira em 1861, artigos que não receberam ainda a atenção que decerto merecem.

César das Neves

Por esta altura, o músico César das Neves é por Teófilo Braga induzido à recolha de canções tradicionais, que, de colaboração com o jornalista Gualdino de Campos, publica em fascículos a partir de 1893, sob o título de Cancioneiro de Músicas Populares.

Reunindo espécimes tradicionais a outros já de proveniência escrita, a colectânea compreende ao todo cerca de seis centenas de títulos, apresentados com acompanhamento pianístico.

Ao mesmo tempo que esta obra de âmbito geográfico nacional, começam a surgir recolhas e estudos circunscritos a algumas regiões do País.

É o caso de Danças Populares do Baixo Alentejo e Modas – Estribilhos Alentejanos, de M. Dias Nunes (1891), além de um Romanceiro e Cancioneiro do Algarve, coligido por Francisco Xavier de Ataíde Oliveira (1905).

Pedro Fernandes Tomás

Pronto para publicação desde 1891, só em 1896 é editado, com um estudo introdutório de José Leite de Vasconcelos, o volume Canções Populares da Beira, de Pedro Fernandes Tomás, professor na Escola Industrial da Figueira da Foz (e neto duma das figuras da revolução liberal de 1820, Manuel Fernandes Tomás).

Publicará este autor, mais tarde, duas outras colectâneas, ambas prefaciadas por António Arroio: Velhas Canções e Romances Populares (1913) e Cantares do Povo (1919).

No prefácio da primeira edição das Canções Populares da Beira, dá o responsável pela recolha conta do cuidado que, em seu entender, deveria merecer a preservação da música tradicional portuguesa:

«A facilidade de comunicações que actualmente põe em contacto directo a população das aldeias com as cidades, a emigração crescente para os centros populosos tem influído duma maneira desastrosa nas canções do nosso povo, que vai abandonando as formosas e singelas cantigas tradicionais, e as suas características danças tão variadas e originais, trocando-as pelas pretensiosas danças de sala, ou pelos ‘motivos’ mais ou menos deturpados da ‘opereta’ em voga, pelo ‘fado’ transportado das vielas escuras das cidades para os campos e para as aldeias, com a substituição da antiga ‘viola de arame’ pela moderna guitarra […]»

Nessa primeira edição das Canções Populares da Beira são os espécimes apresentados com acompanhamento pianístico, omitido na segunda (1923), em cujo prefácio se justifica:

«Nesta edição suprimimos os acompanhamentos de piano, que figuram na primeira, reproduzindo-se as melodias tais quais o povo as canta em toda a sua simplicidade, a exemplo do que já fizemos nas duas colecções Velhas Canções e Romances Populares e Cantares do Povo

Gonçalo Sampaio

Outro dos pioneiros da recolha e – salvaguardados os limites inerentes à ausência, no caso, de sólida preparação musical – também do estudo da música tradicional portuguesa é o botânico Gonçalo Sampaio (1865-1937), a quem, ao lado de notável obra de investigador no domínio da sua formação, deve a etnomusicologia portuguesa apreciável contributo, relativo à província do Minho.

A sua publicação mais relevante – que na segunda edição, póstuma (1944), é precedida duma colectânea de textos antes publicados como artigos – tem o título de Cancioneiro Minhoto.

Aqui se transcrevem, segundo as designações dos vários capítulos, «Modas de terno», «Modas de romaria», «Cantos coreográficos», «Cantos de velhos romances», «Toadas» («Dos cegos», «De embalo», «Dos pedintes», «Dos Reis», «De aboiar», «De abaular») e «Música religiosa».

Continua aqui.

Fonte: “O essencial sobre a Música Tradicional Portuguesa”, José Bettencourt da Câmara (texto editado e adaptado) | Imagem: Mulheres do Minho trabalhando no campo (meramente ilustrativa) – “Ilustração Portuguesa”, nº 151 – 11 de Janeiro de 1909