A música tradicional portuguesa – Introdução
O papel do Romantismo
(…) A música tradicional portuguesa é parte integrante dum todo, que, sem detrimento da sua complexidade, podemos designar como o sistema da cultura do povo português.
Ligada à culinária, à indumentária, à linguagem, à mentalidade popular, esta característica de elemento dum sistema constitui um dos seus aspectos importantes a reter, dada a necessidade de considerarmos, de pelo menos supormos, o contexto, o todo, para entendermos a parte que lhe pertence.
Ora, quando cotejamos a história da investigação dos vários domínios da cultura popular portuguesa, verificamos que a música não foi dos que conheceram desenvolvimento mais precoce.
Desde uma primeira geração romântica que a literatura popular portuguesa, para referir um dos domínios de expressão a que a música está mais nitidamente associada, vem suscitando interesse: Almeida Garrett ocupou-se do romanceiro, acção que encontrou continuadores em Teófilo Braga, José Leite de Vasconcelos e outros mais recentes; também o cancioneiro, na sua dimensão literária, motivou alguns investigadores.
Mas, apesar de Garrett já aludir, com sensibilidade, às melodias de romances (1), só mais tarde a música tradicional portuguesa logrou colher a atenção de alguns curiosos.
Posteriormente, Rodney Gallop, contrapondo o avanço de Espanha, nesta matéria, à situação portuguesa, escreverá:
«Similarmente, que tesouros possuiríamos hoje em Portugal, se Garrett e Braga tivessem anotado as melodias dos romances cuja letra curiosamente registaram!» (2)
Atraso nos estudos musicólogos em Portugal
Encontram-se as razões do facto, em parte, no atraso do desenvolvimento dos estudos musicológicos em Portugal, na contumaz ausência de formação humanística no músico português, razões a que deverá acrescentar-se, talvez, a das dificuldades inerentes ao objecto em estudo, de notação de melodias e ritmos por vezes complexos.
Compreende-se que a constatação do tardio arranque da investigação etnomusicológica portuguesa costume seguir-se, no discurso corrente nestas circunstâncias, um ror de lamentações, invocando-se geralmente a natureza da expressão musical, facto agravado por se tratar aqui de música não escrita, assim submetida ao perigo de contágios e deturpações.
Se nas primeiras décadas do século XX era a influência dos «banalíssimos ritornelos da Revista lisboeta, das ineptas coplas da Opereta cediça, da remoída variação de todo o fadário português» (3) que, como dizia um Francisco de Lacerda, devia temer-se, é a rádio que a partir dos últimos anos da década de 30 geralmente se aponta como inimiga das tradições musicais do povo português.
De qualquer modo, ao romantismo devemos as concepções que levam à valorização e ao estudo da música tradicional.
Antes, sempre o povo fizera música, a sua música, mas os estratos «superiores» da sociedade, os músicos profissionais que os serviam, mal reparavam nela, dificilmente concedendo o estatuto de arte a tais formas de expressão.
A revolução romântica
Até ao século XVIII, grosso modo, a música tradicional cumpria para o povo as funções que o levavam a fazê-la, sem suscitar particular interesse em elementos letrados, exteriores à classe popular.
A revolução romântica ganha a sua verdadeira amplitude quando referida à situação que a precedeu.
À medida que nos aproximamos do século XIX e nele penetramos, sinais de interesse pelas práticas musicais das camadas populares surgem nos escritos dos intelectuais europeus.
Por dois aspectos, naturalmente interdependentes, a canção popular seduz o homem romântico: pela antiguidade nela pressuposta e pelo seu casticismo, ou seja, numa formulação globalizante, enquanto expressão duma identidade nacional.
De algum modo filho do romantismo, ou a ele articulado, o nacionalismo prolongar-se-á até além do século XIX, assumindo expressões sociais, políticas e culturais.
No plano cultural, no dos estudos musicológicos também, ele não é alheio aos progressos que a partir das últimas décadas daquele século se verificam na investigação da música tradicional.
Esta, expressão da idiossincrasia do povo, pode representar a própria Nação, nas raízes que mais fundo mergulham no tempo.
Vistos como testemunho de remotas épocas, os cantos populares correspondem às necessidades do fervor nacionalista, associado ao gosto pela história, à veneração do passado colectivo.
É assim que o romantismo – que poderíamos considerar como o primeiro movimento cultural contemporâneo – descobre e impõe o gosto pela música tradicional, o que não se opera sem resistências.
Mais tarde, não faltará quem ainda ache essa forma de expressão destituída de interesse artístico.
A arte popular vista como imitação
Já às portas da revolução que no dealbar do século XX origina a arte moderna, e se traduz na definitiva ultrapassagem de paradigmas estéticos académicos, é a arte popular vista por muitos como mera degradação, na melhor das hipóteses, como resultado de tosca capacidade de imitação da arte culta.
O romantismo introduzira a semente na terra, mas é efectivamente a modernidade estética que, de algum modo, lhe vem colher os frutos, banindo um normativismo secular que marcou a evolução da chamada arte ocidental.
A aceitação como arte dos produtos de outros contextos civilizacionais que não o ocidental – e dentro deste, mais particularmente, a tirânica tradição clássica – vem juntar-se a arte popular (como ainda as formas de expressão artística das crianças e dos alienados).
Notas:
(1) «De pequeno me lembra que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada nossa em torno da qual nos reuníamos nós, os pequenos todos da casa, nas longas noites de Inverno, recitar-nos meio cantadas, meio rezadas, estas xácaras e romances populares de maravilhas e encantamentos, de lindas princesas, de galantes e esforçados cavaleiros. A monotonia do canto, a singeleza da frase, um não sei quê de sentimental, terno e mavioso, tudo me fazia tão profunda impressão e me enlevava os sentidos em tal estado de suavidade melancólica, que ainda hoje me lembram como presentes aquelas horas de gozo inocente, com uma saudade que me dá pena e prazer ao mesmo tempo.» Almeida Garret, Romanceiro, vol. 1, Lello e Irmão Editores, Porto, 1971, p. 34.
(2) Rodney Gallop, Cantares do Povo Português, Instituto de Alta Cultura, Lisboa, 1937, p.10.
(3) José Bettencourt da Câmara, «Dois textos de Luís Ribeiro e de Francisco de Lacerda sobre o cancioneiro açoriano», Revista de Cultura Açoriana, Casa dos Açores, Lisboa, 1989, n.º 1, p. 21.
Fonte: “O essencial sobre a Música Tradicional Portuguesa”, José Bettencourt da Câmara (texto editado e adaptado) | Imagem: “Os Gaiteiros na Romaria” – Revista “Occidente”, nº1239 – 30 de Maio de 1913