Usos, costumes e tradições

A matança do porco era em Dezembro e Janeiro

O boi e o porco

Há dois animais que o pequeno lavrador cria com particular desvelo, às vezes com maior desvelo do que lhe merece uma pessoa de família. São o porco e o boi.

Ao menor ruído suspeito no chiqueiro ou no curral, levanta-se ele sobressaltado por horas mortas da noite, faça o tempo que fizer, vai inquirir do que se trata, faz-lhe companhia, diz-lhe coisas animadoras e só volta a recolher quando se assegura de que dissipou todo o motivo para cuidados.

Passam-se dias e semanas que nunca pergunta aos filhos se estes comeram; mas não passa um só dia em que não lhes pergunte se já deram de comer ao porco e ao boi! Ai deles se não o fizeram!

E nisto não há diferença entre os dois animais.

O grunhido de um não merece menos cuidado que o mugido do outro; mas que diferença entre os sentimentos que cada um deles inspira, fora do prejuízo que a perda de um ou outro pode causar ao dono!

O boi trata-se como uma criatura inteligente, como um poderoso e leal companheiro de trabalho; alimenta-se bem para lhe dar forças, para ele ter saúde e galhardia.

O seu vigor, a abundância das suas carnes, a sua nediez, não lembram a vantagem de o matar, não provocam a voracidade.

Quando o lavrador, obrigado a desfazer-se dele, o manda à feira ou o vende para a matança, acompanham-no sempre, até ele sumir-se na volta da estrada, olhares saudosos e até lágrimas serenas de pesar.

O porco nasce para ser morto!

Mas o porco… desde que entrou na pocilga nunca mais deixou de pairar sobre ele a ideia da morte.

Não se lhe põe uma só gamelada, não se lhe deita uma cama de mato, não o desencharcam da estrumeira, não se faz nada em suma para lhe conservar a vida que não seja com o intuito de lha tirar, quando ele a tiver mais arreigada de carnes e de banhas.

É uma simples máquina de transformação de quantas imundícies apanha ao alcance do focinho numa carne caracteristicamente saborosa.

Morre entre as alegrias da família, e as inicas lágrimas que acompanham a sua morte são as provocadas pelo arrenegado óleo volátil das cebolas nos olhos de quem as pica para fazer as morcelas.

E é realmente um dia ele festa o da morte do porco por essa província fora.

Em Dezembro e Janeiro

Dezembro

e Janeiro são os meses principalmente destinados a ela.

A operação é feita ao amanhecer e a noite toda gasta em afanosos preparativos: panos, carqueja, alguidares, tachos, caldeirões, temperos para as morcelas, abundando a montes as cebolas, que se põem tempo antes a grelar em alfobres agasalhados da geada ou em caixotes com a cautela com que se borrifa o trigo a grelar em pires e pratinhos para enfeitar os presépios.

Ninguém dorme. Mesmo os que não andam naquele afã espreitam impacientes os primeiros desmaios da noite.

Abre-se o portão e sente-se finalmente no pátio passos cadenciados, solenes e pesados como devem ser os de Deibler e dos seus ajudantes.

Grunhidos agudos, soltos às arrancadas, estrugem aflitivamente aos ouvidos sem ninguém se condoer; pelo contrário, em todos os olhos só faísca a alegria e a gula.

Dão duas ou três voltas com uma corda ao focinho do bicho, mas nem isso consegue reprimi-los.

A matança do porco

Atam-lhe também os pés e as mãos, levantam-no em peso e colocam-no em cima de uma mesa ou de um banco; enterram-lhe uma enorme faca no pescoço e grossas golfadas de sangue rubro são aparadas em alguidares, onde mãos de mulheres o vão agitando para ele não coagular.

Nalguns pontos a morte é pronta, devida a uma picada de sovelão, e depois é que lhe tiram o sangue.

Morto o animal, a primeira coisa a fazer é tirar-lhe o cabelo. Percorre-se-lhe o corpo demoradamente com ramos de carqueja a arder, enchendo-se o pátio e a casa de um fumo denso, fétido, irritante, no meio de crepitações secas.

Raspa-se depois o couro com uma faca, esfrega-se com carqueja molhada e lava-se em seguida com abundante água.

Abre-se de cima abaixo pela barriga, extraem-se-lhe todas as vísceras e banhas, separando cada coisa para o seu alguidar e parecendo que aqueles despojos enlaivados de sangue ainda palpitam de um resto de vida.

Correm logo as mulheres a lavar as tripas, aplicando-se as grossas ao fabrico das morcelas e as delgadas às linguiças e chouriços de carne. E, como estas são poucas e fracas, aproveitam-se também as de boi para os enchidos de carne.

Não se calcula a azáfama que vai lá dentro, em casa.

O sangue continua a mexer-se, misturando-lhe arroz cozido, cebola picada, pedacinhos de gordura em rama, cominhos, e não sei que mais;

corta-se o fígado, o coração e os rins em fragmentos e deitam-se em panelas com um pouco de sangue que se reservou do destinado às morcelas;

cruzam-se ordens, pedidos, recomendações, entre a cozinha, a dispensa e a casa de jantar: não há maior balbúrdia de trabalho debaixo de um teto.

Dependurado de uma trave

Com a ajuda dos vizinhos, leva-se em braços o porco, depois de esvaziado, e dependura-se a uma trave por uma grossa corda, pondo-se-lhe por debaixo um alguidarinho, onde gotejam uns restos de sangue derivando muito direitinhos pela cauda abaixo.

Dependurado o porco, abre-se longitudinalmente pelo dorso. Então é que se vê e admira a grossura do toucinho, que se compara triunfantemente com a dos porcos dos vizinhos.

Escorrido de líquidos, retalha-se e divide-se em peças: cabeças, presuntos, chispes, toucinho para o fumeiro e para a salga, etc.

Tudo se lhe aproveita, desde o focinho até à cauda, que é a primeira coisa que se saboreia, assada nas brasas.

Depois são umas assaduras de febra e de toucinho delgado para os gulosos impacientes; mais tarde, as morcelas, os torresmos, as linguiças, etc.; enfim, porco divide-se e conserva-se tão bem que pelo ano adiante não há em casa do pequeno lavrador conduto mais apetecido e duradouro.

Por isso o dia da sua morte é um dia de festa e os grunhidos dilacerantes da pobre vítima, longe de encontrarem eco, são abafados inexoravelmente pelo ruído da mais franca alegria que acompanha sempre a abundancia e a paz que nos entram no lar.

A.M.F.

Clichés do sr. João de Magalhães Júnior

Fonte: “Ilustração Portuguesa” – I Série – nº 412 – 12 de Janeiro de 1912