A arte de tirar cortiça em Montargil – Alto Alentejo

A arte de tirar cortiça

Para muitos, o “trabalho de campo” é uma actividade reservada aos de menor capacidade intelectual e inferior posição social, ignorando, que nalgumas situações, se trata mesmo de uma ciência – não o será, por exemplo, o “enxertar”? – e não raras vezes uma arte, como é o caso de “retirar cortiça à mão”.

Vivo numa região onde a cortiça é rainha, tenho falado com muitos “tiradores”, e era aqui que estava instalada a “loja de ferreiros” onde se fabricavam das melhores machadas, factor muito importante para a qualidade do trabalho.

Trata-se de um trabalho artesanal, muito antigo, e ao que dizem único no mundo. É um trabalho muito bem pago, mas que requer técnica apurada e muita perícia.

Com golpes certeiros o descortiçador retira a cortiça com a ajuda de um machado próprio, sem prejudicar uma das mais preciosas espécies florestais do país” (Floresta e Ambiente).

Não sendo de ignorar, que só após 40 anos é que a cortiça tem valor de mercado, e que um golpe desferido no tronco nu do sobreiro pode significar o fim do mesmo.

Os tiradores de cortiça

Os “tiradores de cortiça” (a que alguns, noutras regiões, chamam descortiçadores ) têm que ser trabalhadores altamente especializados no manejamento da “ machada de tirar cortiça” ferramenta única no mundo” – há quem lhe chame machado do corticeiro – com um cabo de madeira cortado em cunha, que ajuda a levantar a cortiça sem que nunca se toque no sobreiro”(FA).

É sabido que os golpes na cortiça têm que ter uma sequência certeira no tronco do sobreiro, para que seja aberto um rasgo de alto a baixo – à altura do peito – sem atingir o (entre)casco – fazendo a seguir um corte na horizontal, para então e com o cabo da machada arrancar a cortiça da árvore.

Refira-se que quanto maior for a prancha retirada, mais alto será o seu valor comercial.

A cortiça e a machada de Montargil

Atrás, referimos que de vários pontos do país aqui procuravam, pela sua qualidade de fabrico, as “machadas” para tirar cortiça. No entanto, e a exemplo de outras artes e ofícios, hoje apenas aqui existe uma loja de ferreiro e trabalhando em especial na construção civil. A loja dos “Labécos” fechou, mas com o Manuel Carlos um dos “mestres” da mesma várias vezes temos falado, e aqui deixamos um extracto duma das conversas.

Na vossa oficina havia uma especialidade… refiro-me às machadas!

Isso é uma coisa que se pode pôr a nível nacional. Ainda hoje, de Alcácer do Sal, de Grândola, de Santiago de Cacém, se querem uma machadinha boa para tirar cortiça vêm a Montargil à procura do meu primo Luís (que também já deixou de trabalhar). E quem diz machadas, pode também dizer enxadas, roçadoras, foicinhas, principalmente ferramentas de corte, que só a enxada não é.

Mas havia um segredo…

Não havia segredo, havia sabedoria em saber avaliar os materiais com que se lidava. Por exemplo, tive a possibilidade de saber de coisas que o meu avô fazia e ele próprio não sabia porque resultava. As pessoas até criaram mitos.

Dizia-se, por exemplo, que o meu tio Joaquim ainda era mais especialista do que o Zé. Que o Zé fazia enxadas e o Joaquim fazia machadas. Não era nada, o que um fazia também fazia o outro. Até se dizia que eles fechavam a porta para ninguém ver. Não era isso. Eu era capaz de tratar da machada à frente de uma pessoa qualquer e ela poderia ver o que quisesse que não aprendia nada.

Era então uma intuição?

Não, era saber avaliar o material com que se trabalhava. E a prova que eu tive depois foi apanhar um livro na Biblioteca Itinerante da F. Gulbenkian e que era dum engenheiro químico brasileiro, que me fez compreender tudo aquilo que a gente fazia sem saber explicar o por quê, vi a razão teórica daquilo.

Mais tarde, com experiências que fiz, vi tudo confirmado. Resumindo, o segredo está na têmpera. Se o arrefecimento for muito rápido, fica mais granular e não é sedimentoso. Se a têmpera for muito lenta fica mais filamentoso. Quanto mais filamentoso fica, mais macio é; quanto mais granular fica, mais rijo é.

Explica lá então melhor…

O que faz pôr o granulado mais baixo, é a oxidação que é feita pelo contacto do oxigénio do ar com a água. E se arranjarmos uma camada boa de sabão, este vem todo ao de cima – o sabão isola a água do ar, corta-lhe o contacto, deixa de arrefecer a água por baixo do sabão e o oxigénio do ar não faz mal nenhum ao aço, pelo contrário deixa enrijar o aço o mais possível, ele aguenta bem, e a gente tira-lhe a graduação.

Mas vocês não trabalhavam com termómetros…

Na verdade não havia termómetros para medir os graus, mas a gente sabia pela cor.

Quanto se tempera, no imediato fica completamente branco, vai passando pela chama, e do branco começa a ficar em palha, depois amarelado, depois azul, verde, castanho e encarnado e fica destemperado. Há toda uma graduação entre o temperado e o temperado máximo. Há, pois, que naturalmente escolher a graduação em relação ao material com que se trabalha.

E, se conhecer o material com que se trabalha, sabe-se por exemplo que um só pode temperar com óleo, e outro só se pode temperar com água.

Mas que óleo?

Havia vários, mas por exemplo um que era usado em Pavia, era feito com sebo do talho, raspas de chavelho, óleo de linhaça e um pouco de prociato amarelo de potássio.

Lino Mendes

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